Ah! Aquela cena de corrida impressionante! Uma arena lotada e vibrando ao acompanhar uma extraordinária disparada de bigas carregadas por cavalos velozes (Ben-Hur, 1959). Aquela fuga em massa do Egito, com uma visão aérea impressionante do povo liberto caminhando para dentro do deserto árido rumo à Terra Prometida (Os 10 Mandamentos, 1956). A suntuosa entrada triunfante da rainha do Egito em Roma, carregada e ovacionada por uma legião de súditos (Cleópatra, 1963)...
O que seria destas cenas sem a colaboração criativa de uma uma multidão de dezenas, centenas, milhares de pessoas?!
Mas me refiro também à cenas menos massivas, falo das tomadas de cunho corriqueiro que exibem uma cidade em pleno funcionamento, com transeuntes, uma praça com famílias e crianças brincando, vendedores de pipoca...
E para que isso seja viável, existe uma categoria de atuação na arte dramática cujos representantes respondem pelo nome de figurantes, extras, entre outras nomenclaturas, especialmente em inglês. Estes, os figurantes como chamados aqui no Brasil, são convocados com intuito de acrescentar a estas cenas, que exigem a presença de "ação de fundo de cena", ou grandes massas humanas - arenas, guerras, revoltas, etc.. - com uma ambientação realística. Eles não precisam ser de fato atores, tampouco recebem quantias enormes em dinheiro como as estrelas protagonistas e coadjuvantes.
Selecionados de maneira mais flexível, ou seguindo a risca as determinações e demandas da produção, para ser um figurante é dispensável formação específica na maioria dos casos. Em outros, no entanto, algumas habilidades artísticas podem ser pré requisitos para a contratação, e para dar vivacidade e veracidade as cenas planejadas. Mas isso varia muito de acordo com a visão de cada diretor, seja ele de teatro, cinema ou TV.
Catalogado no Guinness World Records, o filme épico de 1982 "Ghandi", baseado na vida do líder indiano Mahatma Gandhi, detém o record da maior utilização de figurantes em toda a história do cinema. Unicamente para as cenas do funeral do líder indiano assassinado em 1948 - pasme! - estiveram participando 300 mil pessoas! Muito embora, neste caso, cerca de 2/3 eram de figurantes voluntários.
Para "Titanic" (1997), no entanto, os números mais modestos ainda são muitos expressivos, e o colocam no hanking das produções empregaram a maior quantidade de extras da história das telonas. Durante toda a produção, que consumiu sete meses para ser concluída, dezoito mil figurantes passaram pelo estúdio localizado na cidade de Baja California, no México. Mas este é um número absoluto, considerando que atuando de uma só vez e durante apenas três dias de gravações, duas mil pessoas ajudaram a dar vida à multidão que acompanha e embarca no Titanic para a viagem inaugural rumo aos Estados Unidos.
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Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures |
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Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures |
Para além destes números, um grupo reduzido e seleto de 150 figurantes denominado "core extras" foi especialmente contratado e treinado para atuar durante os meses em que o filme seria gravado no México entre 1996 e 1997. Para cada um deles foi dada uma uma breve história básica de fundo, de modo que pudessem parecer e representar os ocupantes do Titanic em 1912. Tática adotada para que estas "faces recorrentes" se tornassem familiares durante toda história que circunda o casal principal vivido por Leonardo DiCpario e Kate Winslet.
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Neste grupo especial estava um sortudo figurante mexicano pra lá de sincero chamado Daniel Zepeda, com quem este editor que vos fala entrou em contato há mais de 10 anos com o pedido de autorização para que sua história pudesse ser traduzida ao português para o Titanic em Foco.
Pedido este atendido rápida e gentilmente por ele próprio como uma agradável surpresa! No que resulta agora esta matéria curiosa. Com o agradecimento a sua autorização pessoal (valeu mesmo Daniel, saudações brasileiras!), confira o que ele revela honestamente sobre os bastidores deste grande filme. Bastidores nem sempre tão glamourosos quanto podemos imaginar como expectadores.
Não economizando em sinceridade e pessoalidade, este passageiro de um dos filmes mais rentáveis da história do cinema relata brevemente parte de suas memórias em texto e imagens, dispensando grandes floreios; algo indispensável para que possamos apreender como de fato funcionam os bastidores da indústria de Hollywood. E também para que possamos imaginar como seria incrível poder estar também no Titanic! Não no real, mas o imortalizado no cinema.

Quem diria, esse cara é mais velho do que parece! A verdade é que não, mas eu estava no Titanic, na verdade "eu trabalhei no Titanic", quer dizer, no filme, tive a honra de ter trabalhado em um dos filmes mais caros da história, mas nem pense que eu era ator ou algo assim, eu era um "quase" ator, desses que só servem para fazer figuração, ou seja, um "figurante".
Eu estive trabalhando em Rosarito, Baja California, por mais de 5 meses. Acho que o pagamento era bom, sinceramente nem lembro, mas eles pagaram meu quarto de hotel, refeições e a passagem aérea da Cidade do México. O hotel em que fiquei era bem decente e a verdade é que na maior parte do tempo você não faz quase nada, mas nos dias que você trabalha tudo o que você faz é correr para se arrumar e esperar o resto do tempo. No demais o trabalho era chato e tedioso, naquela época não existiam iPods, iPads, Kindles e outras tecnologias que tornam nossas vidas menos chatas, principalmente quando se trata de esperar e não fazer nada, não existiam celulares e usávamos telefones com cartão Ladatel, apenas livros, e eu li vários.
Abaixo vou compartilhar com vocês algumas das fotos que tirei enquanto trabalhava no filme. Vale ressaltar que era proibido tirar fotos, mas escondi a câmera onde pude. Não era uma câmera pequena, era uma Canon profissional de metal, e às vezes eu até levava a lente de zoom comigo. Porém, quando eu estava vestido com roupas de terceira classe, era "fácil" esconder a câmera no meio de tantas roupas.
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Confira as seguintes fotos que tirei do set. Em várias fotos é possível ver bonecos ou manequins, que eram usados para preencher cenas que exigiam muita gente e eram filmadas à distância. Esses "atores" não falavam, não comiam e não reclamavam do frio ou do calor; eles eram bons trabalhadores. Se você vir a foto de um dos botes salva-vidas, verá que o nome está ao contrário (Liverpool), isso porque havia apenas um lado do barco, se a cena fosse do lado esquerdo (bombordo), eles nos vestiram com tudo ao contrário, desde os botões das roupas até o cabelo para trás, uma boa técnica para economizar dinheiro. Além disso, se eles quisessem gravar uma cena do outro lado, havia uma montanha ao fundo e isso atrapalhava.
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Eu supostamente era [passageiro] da terceira classe. Me fizeram deixar crescer um bigode, e foi a única e última vez que o deixei crescer, mas de vez em quando eles me colocaram na primeira classe. Tive a sorte de não estar entre os afogados, uma das últimas cenas onde pessoas estão mortas flutuando no mar. Para essas cenas eles colocaram gelo artificial no cabelo das pessoas, o que me disseram que era muito difícil de remover. Essas cenas foram feitas dentro de um cenário que tinha uma piscina de 40 x 30 metros (aproximadamente) e 80 cm de profundidade, que por sinal era mantida bem aquecida. Me contaram histórias de que as pessoas dormiam na água por causa da temperatura agradável.
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Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures |
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Uma das cenas mais interessantes das quais participei foi quando o navio se parte em dois e a popa afunda novamente. Alguns segundos depois, ele começa a inclinar até 90 graus e então afunda. Esta cena foi uma das primeiras a serem filmadas, pois foi feita uma plataforma que inclinava até 90 graus, sobre a qual colocavam a parte traseira do navio (popa). Levamos mais de uma semana para filmar isso e trabalhamos à noite. Era como estar em um brinquedo de parque de diversões: eles colocavam um cinto de segurança em você e o prendiam ao barco, enquanto do outro lado você observava os dublês (e mulheres também) fazendo seu trabalho, você via como eles caíam ou escorregavam do convés do barco, enquanto outros se jogavam em colchões ou caixas de papelão.
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
Durante essa cena notei um erro, fiquei pensando se isso seria visto no filme ou se eles iriam corrigir. Para minha surpresa no entanto, no dia que vi o filme percebi que eles não editaram isso: se você assistir ao filme quando o navio está afundando, verá como os dublês escorregam e se chocam contra os suportes onde os barcos eram amarrados ao cais, esses suportes supostamente são feitos de metal, mas no navio [cenográfico] eram feitos de "borracha", essas dobravam para amortecer a queda das pessoas. Mas na edição final ficou assim, você pode ver no filme.
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Vou contar uma coisa muito engraçada que aconteceu comigo; porque a comida às vezes não era "tão boa". acontece que fiquei enjoado, eram umas 4 da manhã e meu estômago começou a borbulhar, infelizmente o navio estava inclinado e ninguém conseguia entrar ou sair, a cena estava mais ou menos na metade. meu estômago borbulhava cada vez mais, naquele momento você começa a apertar as nádegas para que nada aconteça (ou nada saia), eu já estava desesperado e depois de um tempo eles finalmente abaixaram a plataforma. Enquanto ela descia eu já estava sem a corda de segurança, corri para a escada onde dei de cara com Kate Winslet, não me lembro se pedi permissão a ela ou a tirei do caminho, minha mente não estava muito boa. Saí correndo e fui para o banheiro dos dublês. Mas a história ainda não tinha terminado, pois ainda tinha que tirar o casaco, o colete, os sapatos, as calças, o cinto de segurança - tinha uma meia-calça de ciclista para não arranhar -, o cinto e a cueca…. tudo na hora certa.
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Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures |
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Posso continuar contando muitas anedotas de tudo que aconteceu comigo e vi no filme. Por exemplo posso contar que Di Caprio era um babaca que ganhou seu primeiro grande papel, e agora o cara está onde está agora muito graças a esse filme, a outra garota… Kate Winslet, ela era mais simples e fácil de abordar, embora quando a vi caminhando ao meu lado não soubesse que ela era a atriz principal, ela parecia tão normal (e não tão bonita) quanto muitas das figurantes que trabalharam lá.
Os atores profissionais, em sua maioria, eram pessoas muito pé no chão, especialmente Kathy Bates e Victor Garber [intérprete do projetista Thomas Andrews], aqueles com quem mais interagi. Eles comiam os lanches dos extras sem problemas e conversavam com você. Eu até vi Kathy Bates [intéprete da sobrevivente Molly Brown, ao lado] encher sua bolsa com doces e chocolates para levar para os figurantes que não tinham permissão para sair do set. ***NOTA DO EDITOR: A atriz parece repetir na vida real a camaradagem descontraída de Molly Brown, sua personagem. Uma estrela vencedora de Oscar atenciosa até mesmo com os figurantes 👏 👏 👏
Aliás, nós, figurantes, fomos os mais maltratados do filme, mas mesmo assim a comida era boa (às vezes) e os lanches eram, na maioria, junk food, diferente dos atores, que tomavam sucos, vitaminas, frutas, vegetais... enfim, a dieta deles era mais saudável que a nossa, que tínhamos pão Bimbo, donuts, chocolate, sopas Maruchan, biscoitos Gamesa, salgadinhos e outras porcarias.
Para quem não sabe como foram feitas as cenas onde os interiores afundam, foi construído foi um mega tanque, no qual eles colocavam água. Em uma plataforma do tamanho do tanque parte do cenário (interiores) foi construída. Isso então foi pendurado em um guindaste que desciam e inundavam o cenário. Era legal ver como a água continuava entrando, mas era detida antes de chegar onde eles queriam filmar.
Ao lado: Na fluida última tomada do longa, que se desenvolve quase como um sonho, Daniel Zepeda aparece aos pés da escadaria da 1ª classe nos últimos segundos das 3:14min de película, enquanto aplaude o desfecho do casal apaixonado, agora reunidos para a eternidade. Pelo contexto da cena, Daniel aqui está porque foi ele também uma das vítimas do naufrágio. Embora vivíssimo para contar suas memórias sobre estes dias memoráveis no set de James Cameron. A cena no entanto foi gravada tempos antes do final da produção, em função de que o cenário mais adiante seria destruído quase por completo durante as gravações da tomada em que a água invade a escadaria..
Foram alguns meses muito interessantes, vi como é feito um mega filme, que naquela época nunca pensei que seria o que se tornou. Já havia trabalhado [como figurante] em outra ocasião em um filme com Paul Newman, um filme intitulado “Fat Man & Little Boy” ("O Início do Fim", no Brasil), sobre a construção da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, no qual apareço muito mais do que em Titanic, no qual trabalhei por 3 meses na cidade de Durango.
Falando nisso, você deve estar se perguntando: onde diabos eu estou no filme? A verdade é que já vi duas vezes, mas considerando o tempo que trabalhei lá realmente me vejo muito pouco, sei que estou no baile da 3ª classe, embora não goste de dançar estou agindo de forma estranha naquela cena (bom, nada novo aqui).
Mas onde consigo me ver bem é em uma das últimas cenas, onde a velhinha retorna ao navio e é recebida por DiCaprio, estou lá embaixo na escada ao lado de um cara barbudo, sei que estou em muitas outras cenas, principalmente quando o navio está afundando, me vejo correndo pelo barco em muitos lugares, enfim...
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Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures |
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Foi uma história muito legal e o tempo não mudou isso. A última vez que vi o filme foi quando saiu em VHS (PORRA! Faz tempo), não o vi mais, nem em DVD, para analisá-lo melhor (história de amor ridícula do caralho). Agora que voltou aos cinemas em 3D fiquei com vontade de vê-lo novamente, vamos ver se vou.
Algo incrível é que 100 anos depois dessa tragédia ela ainda está tanto na mente e no imaginário das pessoas. Uma das razões pelas quais acho que é assim, é que foi o primeiro acidente que causou uma comoção mundial, graças às comunicações que estavam apenas começando naquela época, essa notícia se espalhou pelo planeta muito rapidamente, e literalmente se espalhou, já que eles estavam correndo com a notícia :D, ei, não havia Internet…
Posso dizer que ter estado no topo daquele (quase) navio, foi incrível, era 90% do seu tamanho original. Era uma sanção muito estranha cada vez que eu entrava e podia ver a dimensão do navio. De um lado havia uma piscina, onde ocorreram as cenas em que o navio estava afundando, e tinha apenas cerca de 40 cm de profundidade, estava cheia de água do mar. Lembro-me muito bem de que mesmo naquela época os ambientalistas - pessoas que acham que sabem sobre ecologia, mas a maioria deles são idiotas que não usam o cérebro e são levados apenas pelos sentimentos - já protestavam porque a água do mar estava sendo usada...
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Enfim, há tantas coisas que vivi que poderia continuar escrevendo por um tempo, momentos chatos, divertidos e até perigosos. Digo adeus e, se alguém me reconhecer no filme, me avise. Embora lá eu ainda apareça com cabelo, um quepe de terceira classe e um bigode... é difícil para mim me encontrar.

Créditos
Depoimento pessoal de Daniel Zepeda
Fontes
Depoimento pessoal de Daniel Zepeda
wikipedia.org
imdb.com
Titanic Blu-ray edition
Agradecimentos
A Daniel Zepeda pela pronta autorização para a republicação de sua história
Tradução e adaptação de texto e imagens, Rodrigo, Titanc em Foco
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