Ah! Aquela cena de corrida impressionante! Uma arena lotada e vibrando ao acompanhar uma extraordinária disparada de bigas carregadas por cavalos velozes (Ben-Hur, 1959). Aquela fuga em massa do Egito, com uma visão aérea impressionante do povo liberto caminhando para dentro do deserto árido rumo à Terra Prometida (Os 10 Mandamentos, 1956). A suntuosa entrada triunfante da rainha do Egito em Roma, carregada e ovacionada por uma legião de súditos (Cleópatra, 1963)...
O que seria destas cenas sem a colaboração criativa de uma uma multidão de dezenas, centenas, milhares de pessoas?!
Mas me refiro também à cenas menos massivas, falo das tomadas de cunho corriqueiro que exibem uma cidade em pleno funcionamento, com transeuntes, uma praça com famílias e crianças brincando, vendedores de pipoca...
E para que isso seja viável, existe uma categoria de atuação na arte dramática cujos representantes respondem pelo nome de figurantes, extras, entre outras nomenclaturas, especialmente em inglês. Estes, os figurantes como chamados aqui no Brasil, são convocados com intuito de acrescentar a estas cenas, que exigem a presença de "ação de fundo de cena", ou grandes massas humanas - arenas, guerras, revoltas, etc.. - com uma ambientação realística. Eles não precisam ser de fato atores, tampouco recebem quantias enormes em dinheiro como as estrelas protagonistas e coadjuvantes.
Selecionados de maneira mais flexível, ou seguindo a risca as determinações e demandas da produção, para ser um figurante é dispensável formação específica na maioria dos casos. Em outros, no entanto, algumas habilidades artísticas podem ser pré requisitos para a contratação, e para dar vivacidade e veracidade as cenas planejadas. Mas isso varia muito de acordo com a visão de cada diretor, seja ele de teatro, cinema ou TV.
Catalogado no Guinness World Records, o filme épico de 1982 "Ghandi", baseado na vida do líder indiano Mahatma Gandhi, detém o record da maior utilização de figurantes em toda a história do cinema. Unicamente para as cenas do funeral do líder indiano assassinado em 1948 - pasme! - estiveram participando 300 mil pessoas! Muito embora, neste caso, cerca de 2/3 eram de figurantes voluntários.
Mais de 300.000 figurantes participaram da sequência do funeral. Cerca de 200.000 eram voluntários e 94.560 receberam uma pequena taxa (sob contrato). A sequência foi filmada em 31 de janeiro de 1981, o 33º aniversário do funeral de Mohandas Karamchand Gandhi. Onze equipes filmaram mais de 6.100 metros de filme, que foi reduzido para dois minutos e cinco segundos na versão final.
Para "Titanic" (1997), no entanto, os números mais modestos ainda são muitos expressivos, e o colocam no hanking das produções empregaram a maior quantidade de extras da história das telonas. Durante toda a produção, que consumiu sete meses para ser concluída, dezoito mil figurantes passaram pelo estúdio localizado na cidade de Baja California, no México. Mas este é um número absoluto, considerando que atuando de uma só vez e durante apenas três dias de gravações, duas mil pessoas ajudaram a dar vida à multidão que acompanha e embarca no Titanic para a viagem inaugural rumo aos Estados Unidos.
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
Para além destes números, um grupo reduzido e seleto de 150 figurantes denominado "core extras" foi especialmente contratado e treinado para atuar durante os meses em que o filme seria gravado no México entre 1996 e 1997. Para cada um deles foi dada uma uma breve história básica de fundo, de modo que pudessem parecer e representar os ocupantes do Titanic em 1912. Tática adotada para que estas "faces recorrentes" se tornassem familiares durante toda história que circunda o casal principal vivido por Leonardo DiCpario e Kate Winslet.
De setembro de 1996 a março de 1997, mais de cem pessoas de
todos os tipos de ocupação fizeram do cenário de “Titanic” sua casa. Esses
figurantes não só deram profundidade emocional ao filme, mas também garantiram
o espírito de grupo da produção. Ao fundo do grupo a reprodução cenográfica do Titanic, que originalmente media 236 metros de comprimento, aqui vista semi desmontada em função das necessidades das várias fases de afundamento.
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Neste grupo especial estava um sortudo figurante mexicano pra lá de sincero chamado Daniel Zepeda, com quem este editor que vos fala entrou em contato há mais de 10 anos com o pedido de autorização para que sua história pudesse ser traduzida ao português para o Titanic em Foco.
Pedido este atendido rápida e gentilmente por ele próprio como uma agradável surpresa! No que resulta agora esta matéria curiosa. Com o agradecimento a sua autorização pessoal (valeu mesmo Daniel, saudações brasileiras!), confira o que ele revela honestamente sobre os bastidores deste grande filme. Bastidores nem sempre tão glamourosos quanto podemos imaginar como expectadores.
Não economizando em sinceridade e pessoalidade, este passageiro de um dos filmes mais rentáveis da história do cinema relata brevemente parte de suas memórias em texto e imagens, dispensando grandes floreios; algo indispensável para que possamos apreender como de fato funcionam os bastidores da indústria de Hollywood. E também para que possamos imaginar como seria incrível poder estar também no Titanic! Não no real, mas o imortalizado no cinema.
Quem diria, esse cara é mais velho do que parece! A verdade é que não, mas eu estava no Titanic, na verdade "eu trabalhei no Titanic", quer dizer, no filme, tive a honra de ter trabalhado em um dos filmes mais caros da história, mas nem pense que eu era ator ou algo assim, eu era um "quase" ator, desses que só servem para fazer figuração, ou seja, um "figurante".
Eu estive trabalhando em Rosarito, Baja California, por mais de 5 meses. Acho que o pagamento era bom, sinceramente nem lembro, mas eles pagaram meu quarto de hotel, refeições e a passagem aérea da Cidade do México. O hotel em que fiquei era bem decente e a verdade é que na maior parte do tempo você não faz quase nada, mas nos dias que você trabalha tudo o que você faz é correr para se arrumar e esperar o resto do tempo. No demais o trabalho era chato e tedioso, naquela época não existiam iPods, iPads, Kindles e outras tecnologias que tornam nossas vidas menos chatas, principalmente quando se trata de esperar e não fazer nada, não existiam celulares e usávamos telefones com cartão Ladatel, apenas livros, e eu li vários.
Abaixo vou compartilhar com vocês algumas das fotos que tirei enquanto trabalhava no filme. Vale ressaltar que era proibido tirar fotos, mas escondi a câmera onde pude. Não era uma câmera pequena, era uma Canon profissional de metal, e às vezes eu até levava a lente de zoom comigo. Porém, quando eu estava vestido com roupas de terceira classe, era "fácil" esconder a câmera no meio de tantas roupas.
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Confira as seguintes fotos que tirei do set. Em várias fotos é possível ver bonecos ou manequins, que eram usados para preencher cenas que exigiam muita gente e eram filmadas à distância. Esses "atores" não falavam, não comiam e não reclamavam do frio ou do calor; eles eram bons trabalhadores. Se você vir a foto de um dos botes salva-vidas, verá que o nome está ao contrário (Liverpool), isso porque havia apenas um lado do barco, se a cena fosse do lado esquerdo (bombordo), eles nos vestiram com tudo ao contrário, desde os botões das roupas até o cabelo para trás, uma boa técnica para economizar dinheiro. Além disso, se eles quisessem gravar uma cena do outro lado, havia uma montanha ao fundo e isso atrapalhava.
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Eu supostamente era [passageiro] da terceira classe. Me fizeram deixar crescer um bigode, e foi a única e última vez que o deixei crescer, mas de vez em quando eles me colocaram na primeira classe. Tive a sorte de não estar entre os afogados, uma das últimas cenas onde pessoas estão mortas flutuando no mar. Para essas cenas eles colocaram gelo artificial no cabelo das pessoas, o que me disseram que era muito difícil de remover. Essas cenas foram feitas dentro de um cenário que tinha uma piscina de 40 x 30 metros (aproximadamente) e 80 cm de profundidade, que por sinal era mantida bem aquecida. Me contaram histórias de que as pessoas dormiam na água por causa da temperatura agradável.
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
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Uma das cenas mais interessantes das quais participei foi quando o navio se parte em dois e a popa afunda novamente. Alguns segundos depois, ele começa a inclinar até 90 graus e então afunda. Esta cena foi uma das primeiras a serem filmadas, pois foi feita uma plataforma que inclinava até 90 graus, sobre a qual colocavam a parte traseira do navio (popa). Levamos mais de uma semana para filmar isso e trabalhamos à noite. Era como estar em um brinquedo de parque de diversões: eles colocavam um cinto de segurança em você e o prendiam ao barco, enquanto do outro lado você observava os dublês (e mulheres também) fazendo seu trabalho, você via como eles caíam ou escorregavam do convés do barco, enquanto outros se jogavam em colchões ou caixas de papelão.
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
Durante essa cena notei um erro, fiquei pensando se isso seria visto no filme ou se eles iriam corrigir. Para minha surpresa no entanto, no dia que vi o filme percebi que eles não editaram isso: se você assistir ao filme quando o navio está afundando, verá como os dublês escorregam e se chocam contra os suportes onde os barcos eram amarrados ao cais, esses suportes supostamente são feitos de metal, mas no navio [cenográfico] eram feitos de "borracha", essas dobravam para amortecer a queda das pessoas. Mas na edição final ficou assim, você pode ver no filme.
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Vou contar uma coisa muito engraçada que aconteceu comigo; porque a comida às vezes não era "tão boa". acontece que fiquei enjoado, eram umas 4 da manhã e meu estômago começou a borbulhar, infelizmente o navio estava inclinado e ninguém conseguia entrar ou sair, a cena estava mais ou menos na metade. meu estômago borbulhava cada vez mais, naquele momento você começa a apertar as nádegas para que nada aconteça (ou nada saia), eu já estava desesperado e depois de um tempo eles finalmente abaixaram a plataforma. Enquanto ela descia eu já estava sem a corda de segurança, corri para a escada onde dei de cara com Kate Winslet, não me lembro se pedi permissão a ela ou a tirei do caminho, minha mente não estava muito boa. Saí correndo e fui para o banheiro dos dublês. Mas a história ainda não tinha terminado, pois ainda tinha que tirar o casaco, o colete, os sapatos, as calças, o cinto de segurança - tinha uma meia-calça de ciclista para não arranhar -, o cinto e a cueca…. tudo na hora certa.
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
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Posso continuar contando muitas anedotas de tudo que aconteceu comigo e vi no filme. Por exemplo posso contar que Di Caprio era um babaca que ganhou seu primeiro grande papel, e agora o cara está onde está agora muito graças a esse filme, a outra garota… Kate Winslet, ela era mais simples e fácil de abordar, embora quando a vi caminhando ao meu lado não soubesse que ela era a atriz principal, ela parecia tão normal (e não tão bonita) quanto muitas das figurantes que trabalharam lá.
Os atores profissionais, em sua maioria, eram pessoas muito pé no chão, especialmente Kathy Bates e Victor Garber [intérprete do projetista Thomas Andrews], aqueles com quem mais interagi. Eles comiam os lanches dos extras sem problemas e conversavam com você. Eu até vi Kathy Bates [intéprete da sobrevivente Molly Brown, ao lado] encher sua bolsa com doces e chocolates para levar para os figurantes que não tinham permissão para sair do set. ***NOTA DO EDITOR: A atriz parece repetir na vida real a camaradagem descontraída de Molly Brown, sua personagem. Uma estrela vencedora de Oscar atenciosa até mesmo com os figurantes 👏 👏 👏
Aliás, nós, figurantes, fomos os mais maltratados do filme, mas mesmo assim a comida era boa (às vezes) e os lanches eram, na maioria, junk food, diferente dos atores, que tomavam sucos, vitaminas, frutas, vegetais... enfim, a dieta deles era mais saudável que a nossa, que tínhamos pão Bimbo, donuts, chocolate, sopas Maruchan, biscoitos Gamesa, salgadinhos e outras porcarias.
Para quem não sabe como foram feitas as cenas onde os interiores afundam, foi construído foi um mega tanque, no qual eles colocavam água. Em uma plataforma do tamanho do tanque parte do cenário (interiores) foi construída. Isso então foi pendurado em um guindaste que desciam e inundavam o cenário. Era legal ver como a água continuava entrando, mas era detida antes de chegar onde eles queriam filmar.
Ao lado: Na fluida última tomada do longa, que se desenvolve quase como um sonho, Daniel Zepeda aparece aos pés da escadaria da 1ª classe nos últimos segundos das 3:14min de película, enquanto aplaude o desfecho do casal apaixonado, agora reunidos para a eternidade. Pelo contexto da cena, Daniel aqui está porque foi ele também uma das vítimas do naufrágio. Embora vivíssimo para contar suas memórias sobre estes dias memoráveis no set de James Cameron. A cena no entanto foi gravada tempos antes do final da produção, em função de que o cenário mais adiante seria destruído quase por completo durante as gravações da tomada em que a água invade a escadaria..
Foram alguns meses muito interessantes, vi como é feito um mega filme, que naquela época nunca pensei que seria o que se tornou. Já havia trabalhado [como figurante] em outra ocasião em um filme com Paul Newman, um filme intitulado “Fat Man & Little Boy” ("O Início do Fim", no Brasil), sobre a construção da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, no qual apareço muito mais do que em Titanic, no qual trabalhei por 3 meses na cidade de Durango.
Falando nisso, você deve estar se perguntando: onde diabos eu estou no filme? A verdade é que já vi duas vezes, mas considerando o tempo que trabalhei lá realmente me vejo muito pouco, sei que estou no baile da 3ª classe, embora não goste de dançar estou agindo de forma estranha naquela cena (bom, nada novo aqui).
Mas onde consigo me ver bem é em uma das últimas cenas, onde a velhinha retorna ao navio e é recebida por DiCaprio, estou lá embaixo na escada ao lado de um cara barbudo, sei que estou em muitas outras cenas, principalmente quando o navio está afundando, me vejo correndo pelo barco em muitos lugares, enfim...
Merie W Wallace/ Twenty Century Fox / Paramount Pictures
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Foi uma história muito legal e o tempo não mudou isso. A última vez que vi o filme foi quando saiu em VHS (PORRA! Faz tempo), não o vi mais, nem em DVD, para analisá-lo melhor (história de amor ridícula do caralho). Agora que voltou aos cinemas em 3D fiquei com vontade de vê-lo novamente, vamos ver se vou.
Algo incrível é que 100 anos depois dessa tragédia ela ainda está tanto na mente e no imaginário das pessoas. Uma das razões pelas quais acho que é assim, é que foi o primeiro acidente que causou uma comoção mundial, graças às comunicações que estavam apenas começando naquela época, essa notícia se espalhou pelo planeta muito rapidamente, e literalmente se espalhou, já que eles estavam correndo com a notícia :D, ei, não havia Internet…
Gráfico do navio por "Alotef", Deviantart.com / Reedição por Rodrigo, Titanic em Foco
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Posso dizer que ter estado no topo daquele (quase) navio, foi incrível, era 90% do seu tamanho original. Era uma sanção muito estranha cada vez que eu entrava e podia ver a dimensão do navio. De um lado havia uma piscina, onde ocorreram as cenas em que o navio estava afundando, e tinha apenas cerca de 40 cm de profundidade, estava cheia de água do mar. Lembro-me muito bem de que mesmo naquela época os ambientalistas - pessoas que acham que sabem sobre ecologia, mas a maioria deles são idiotas que não usam o cérebro e são levados apenas pelos sentimentos - já protestavam porque a água do mar estava sendo usada...
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Enfim, há tantas coisas que vivi que poderia continuar escrevendo por um tempo, momentos chatos, divertidos e até perigosos. Digo adeus e, se alguém me reconhecer no filme, me avise. Embora lá eu ainda apareça com cabelo, um quepe de terceira classe e um bigode... é difícil para mim me encontrar.
Créditos
Depoimento pessoal de Daniel Zepeda
Fontes
Depoimento pessoal de Daniel Zepeda
wikipedia.org
imdb.com
Titanic Blu-ray edition
Agradecimentos
A Daniel Zepeda pela pronta autorização para a republicação de sua história
Tradução e adaptação de texto e imagens, Rodrigo, Titanc em Foco
Uma cativante área de interesse e criação artística que conta com seguidores apaixonados é o modelismo, a arte de reproduzir objetos, habitações, meios de transporte, eventos históricos, cenas, - entre uma infinidade de outros elementos - com a arte da miniaturização em escala, o modelismo profissional ou artístico como passatempo. A classe Olympic, da qual o Titanic pertencia, não escapa a este nicho de criação desde os primórdios de sua idealização.
Uma miríade de modelos dos navios Olympic, Titanic e Britannic, tem sido construídos através dos anos no último século, especialmente após a dispersão mundial das notícias do naufrágio do Titanic em abril de 1912, e ganhando expressividade quando sua curta jornada histórica finalmente se solidificou como parte da cultura popular. Mas isso só foi possível após uma relativa "amortização" da onda de choque que o desastre propagou mundo afora, frente a tragédia humana daquela noite entre 14 e a madrugada de 15 de abril de 1912. O distanciamento histórico e a popularização cultural do "tema Titanic" propiciou uma nova visão sobre o assunto, o colocando como tema de apaixonados trabalhos artísticos no âmbito das miniaturas em escala.
Destaque especial para a diversidade incrível de qualidade, marcas e escalas diferentes de modelos - especialmente em plastimodelismo - hoje disponíveis no mercado para quem quiser se aventurar. Este efeito de popularização foi potencializado especialmente nos últimos 28 anos, após a febre mundial de "Titanic", o filme de 1997, que solidificou um amplo estabelecimento do Titanic como ícone cultural popular ao redor do globo. Desde então a facilidade e variedade de modelos disponíveis do Titanic no mercado se tonou um assunto a parte, tudo então ficando bastante acessível aos interessados na encantadora arte do modelismo.
No entanto, os primeiríssimos modelos em escala da chamada "Olympic Class" foram criados ainda antes da do início da construção dos três navios irmãos da White Star Line. estes foram encomendados pelos idos do ano de 1909 pelo estaleiro naval Harland and Wolff, mas com com proposito de oferecer uma pré visualização dos aspectos dos futuros novos navios que seriam erigidos nos estaleiros de Belfast, capital da Irlanda do Norte. E falando especificamente destes modelos históricos, nem todos eles sobreviveram ao tempo, mas ao menos um deles ainda hoje existe, resistiu aos descaminhos da história e aos mais de 114 anos desde sua própria criação. A maquete/modelo conta com uma epopeia digna de nota, quase à altura da trajetória do famoso trio de navios da Olympic Class: Olympic, Titanic e Britannic.
Descubra um pouco mais desta relíquia criada ainda quando a proposta vindoura dos três maiores navios do mundo visava exclusivamente a promessa de viagens memoráveis através do Atlântico Norte, com nenhuma tragédia em mente.
Mais antigo que o Titanic: o modelo dos construtores, a histórica "maquete" do Titanic / 5,6 metros de comprimento e 116 anos de história
Modelos em escala com detalhes exóticos eram produzidos pelos estaleiros navais através de companhias profissionais de modelismo para exibir na forma de miniatura como novos navios que seriam erigidos deveriam parecer quando finalizados. Estes modelos muitas vezes eram usados para para fins publicitários ou de exibição, tipicamente nos escritórios da companhias. O modelo do Titanic que hoje segue exposto no Maritme Museum em Merseyside foi criado pelos construtores do Titanic, a Harland and Wolff, de Belfast. Medindo 5,6 metros de comprimento e na escala 1:48, o modelo foi criado para promover os navios da Olympic Class. Procedimento daquele tempo que não se difere das empresas construtoras de hoje, que com comumente lançam mão de modelos em escala para exibir seus futuros empreendimentos para possíveis interessados. Como condomínios, prédios, estabelecimentos comerciais, e muito mais.
A mais antiga foto do modelo é datada de abril de 1910 e exibe uma visão indistinguível das linhas do Olympic e do Titanic. No entanto neste estágio, seis meses antes do lançamento do Olympic e mais de um ano do lançamento da quilha do Titanic - há diferenças visíveis dos detalhes finais que seriam incorporados aos dois novos navios. A mais notável diferença são três respiradouros do tipo "cowl vent" no topo do compartimento acima das máquinas entre a terceira e a quarta chaminés. Em adição há também uma visível discrepância de design entre a asa da ponte de navegação como mostrada no modelo e as posteriormente de fato finalizadas no Olympic e no Titanic. Este tipo de modelo para exibição com frequência era ricamente detalhado, mas carregava uma certa dose de licença artística em função de embelezamento, como exemplo a aplicação de peças em latão dourado polido para criação de certos equipamentos de convés.
Em fotografias posteriores a uma possível reformulação destes detalhes do modelo, ele é fotografado já alojado em uma vitrine suportada por uma estrutura em madeira esculpida, e e agora com iluminação interna e um display com o anúncio 'White Star Line R.M.S. "Olympic" & "Titanic", the largest ships in the world'. [como na foto acima e no topo da matéria]
Após o naufrágio do Titanic o modelo foi então alterado para representar o novo navio da classe ainda em construção, o Britannic. Ms ainda hoje não se sabe se o modelo seria convertido para o visual do último navio da classe independente no naufrágio do Titanic, ou se o desastre foi o ímpeto para a alteração do mesmo, em função de limar o amargor deixado pela tragédia da mira pública.
Às vistas do que temos hoje com o decorrer mais de um século desde o afundamento do Titanic, tempo em que a cultura popular vagarosamente foi transformando a visão e opinião que se tem de sua história, como uma lenda popular - ainda que com o peso dramático indissociável de seu desastre - mas popularizado pela visão entregue pelos filmes, especialmente o de 1997... faria todo sentido conservar o modelo em sua configuração de "Titanic", se é que ele algum dia foi de fato convertido para o segundo irmão da classe na década de 1910. Naquele tempo, no entanto, o nome "Titanic" não fazia lembrar nem de longe a variedade de interpretações que temos hoje. As 7 letras que compõem seu nome se referiam em quase exclusivo e único plano a uma catástrofe sem paralelos na história da navegação, e sem qualquer sombra de questionamento, com razão pública e notória.
Então, omo anteriormente citado, a White Star Line sob hipótese alguma faria questão de conservar para si e menos ainda para a visão pública, um modelo que traria o espelho do horror que se abateu com o navio de sua propriedade. Seja qual for o caso, fotografias do final de 1914 mostram o modelo já convertido para Britannic, exposto junto do primeiro navio da White Star Line a portar o nome Britannic, construído em 1874. E assim a configuração como Titanic nunca ocorreu, ou mesmo foi limada, ficando para o passado.
A versão de 1914 exibe o modelo com um convés de botes margeado por uma amurada em toda a extensão e grandes guindastes para botes salva vidas a frente da primeira chaminé, dois pares junto da chaminé traseira e uma plataforma adicional sobre a popa. As janelas envidraçadas do convés de passeio seguem configuração similar às do Titanic na parte dianteira, diferente do que proposto então pra o Olympic.
Nos anos de 1920, com a perca do Britannic após uma colisão com uma mina submersa no mar Egeu durante a Primeira Guerra Mundial, o modelo foi novamente alterado para voltar a representar o primeiro navio da classe, o Olympic, sendo então exposto na Britsh Empire Exhibition em 1924 em Wembley em West London. Assim então ele permaneceu até 1951 quado doado para o National Museum Liverpool.
Com o sucesso do clássico livro "A Night to Remember" lançado em 1955, escrito por Walter Lord, o produtor de cinema William McQuitty decidiu adaptar sua versão para as telonas nos estúdios de cinema Pinewood.
Acuidade histórica era então prioridade no set de gravações, então o modelo foi emprestado por um ano para a pré produção do célebre filme "A Night to Remember" (Somente Deus por Testemunha, 1958, no Brasil") para servir de referência para a criação de um segundo modelo utilizado para a captação das cenas que exigiriam efeitos visuais para representar a viagem e naufrágio do Titanic.
Uma célebre fotografia tomada durante a produção do filme exibe o quarto oficial sobrevivente do Titanic, Joseph Groves Boxhall, junto do modelo apontando para algum detalhe, executando então sua atuação ilustre como consultor técnico para os cineastas; ele próprio certamente relembrando os momentos angustiantes que vivenciou durante aquele desastre de pouco mais de 40 anos atrás naquele momento.
Vale no entanto ressaltar que o modelo não foi utilizado nas tomadas do filme, sendo estudado exclusivamente como referência visual para a produção do modelo cenográfico em miniatura.
Ao lado: Trazendo janelas de padrão idêntico às instaladas no Britannic, o modelo criado para as cenas de efeito visual em "A Night to Remember" foi utilizado num tanque de água real, e as cenas resultantes são bastante convincentes, para uma época em que a computação gráfica estava a décadas de nascer.
Considerando que neste período a relíquia trazia detalhes que misturavam características dos três navios da White Star, o modelo resultante igualmente replicou detalhes que não representam características exclusivas do Titanic, mas um misto de aspectos dos três navios irmãos. Detalhe notável é que as janelas no Titanic foram replicadas como as mesmas no modelo histórico discutido nesta matéria, ou seja, como as janelas equipadas exclusivamente no Britannic. Entre outras escorregadas históricas que podem ser conferidas em várias outras cenas. Mas pesando se a escassez de dados precisos acerca do visual do Titanic àquela época, o resultado cinemático da obra é digno de nota.
Uma fotografia de 1957 registra o modelo deixando os arquivos do museu para ser utilizado pela equipe de William McQuitty, e é possível determinar as mudanças feitas na década de 1920. Ainda que visivelmente carregando o nome Titanic na proa, o arranjo das janelas nos conveses A e B permanecem como as encontradas no Britannic. No entanto a amurada no convés de botes e os guindastes gigantes já não estavam mais presentes, mas uma fileira de botes salva vidas.
Em 1982 o modelo foi restaurado pelo museu, que decidiu em configurá-lo com o visual aproximado do Titanic, ainda que não se saiba se algum dia o modelo tenha de fato carregado exclusivamente o visual e o nome Titanic. A configuração das janelas do Britannic foi mantida, mas os botes salva vidas foram alterados para representar o arranjo original de 16 botes standard e 4 botes desmontáveis do Titanic. Ainda assim, o modelo segue trazendo detalhes mistos dos três navios irmãos.
Em 2012 o modelo passou pela primeira vez por uma radiografia para a análise de sua condição de conservação e estado estrutural atual. A mais recente tecnologia digital foi utilizada para captar 17 imagens de raio X. As radiografias estão sendo estudadas para descobrir mais sobre a construção do modelo e para ajudar no processo de uma possível futura remodelação.
Ao lado: Conservadores utilizam uma grande placa de raio X para radiografar o modelo em secções. (Merseyside Maritme Museum, 2012)
Desde sempre se soube que o modelo tinha iluminação interna e era exibido com todas as janelas e portinholas iluminadas. Uma descoberta feita através da radiografia é de que o interior do casco possui isolamento que prevenia rachaduras no casco de madeira, uma vez que a iluminação gerava grande caloria devido às muitas lâmpadas. A iluminação foi removida há muitos anos, mas o raio X revelou prismas espelhados dentro do casco que atuavam na dispersão da luz.
O plano de restauração utilizou de técnicas de modelagem tradicionais que perderam-se com a chegada de materiais modernos, como resinas e plásticos, a fim de recriar a aparência deslumbrante da maquete em sua configuração original do início do século passado. Hoje restaurado, o modelo segue com a mesma configuração restaurada de 1982, e atrai visitantes no Merseyside Maritme Museum como parte da galeria "Titanic and Liverpool: The untold history".
Abaixo - Bertram Vere Dean e Eva Hart, sobreviventes do Titanic, examinam lembranças do navio no Merseyside Maritime Museum, em Liverpool, em 1985. Os itens incluem o modelo dos construtores, um colete salva-vidas de cortiça, uma colher de prata, um relógio e chaves recuperados junto à uma vítima, e também um letreiro metálico removido de um dos botes salva vidas. Irmão mais velho de Millvina Dean [a última sobrevivente do Titanic a falecer, em 2009], Bertram faleceu aos 81 anos, em 14 de abril de 1992, coincidentemente no mesmo dia do aniversário de 80 anos da colisão do Titanic com o iceberg. Eva Hart faleceu em 14 de fevereiro de 1996, aos 91 anos.
O modelo histórico exposto hoje no Merseyside Maritme Museum
Outros modelos históricos
Um outro modelo notável utilizado para promover os novos navios foi alocado na Oceanic House, em Cockspur Street, Londres, escritório da Companhia White Star Line. Nesta foto, datada de 1911, o edifício foi decorado para a coroação do Rei George V (22 de junho) e em celebração à inauguração do Olympic, que partiria em sua primeira viagem em 14 de junho daquele ano.
Acima do pórtico de acesso do prédio foi instalada uma grande maquete representando o Olympic, que foi belamente iluminada durante a noite e trazia o enunciado "Olympic 45.000 TONS". À primeira vista o modelo denota ser o mesmo que hoje está exposto no Merseyside Maritme Museum, Mas a realidade é que a White Star Line se utilizou de um grande conjunto de modelos de diferentes tamanhos e configurações, utilizados também pela construtora Harland and Wolff nos escritórios dos projetistas, cada um deles para um propósito específico. E este, no caso, se perdeu para a história.
Abaixo: Trabalhando nos projetos do trio Olympic Class em um dos dois escritórios de desenhos da Harland and Wolff, em Belfast, os projetistas contaram com uma grande maquete com as características básicas dos novos navios. Nesta foto em específico o modelo carrega características do Olympic. Diferente da maquete exposta hoje no Merseyside Museum, este era do tipo "half model" (meio modelo), não era integral, tampouco muito detalhado, mas um exato corte longitudinal exibindo o perfil de boreste apenas. O modelo neste caso parece também perdido para a história.
Abaixo: Como tradição característica das companhias de navegação do início do século XX, abaixo estão dois modelos dos construtores do RMS Mauretania, navio concorrente direto e anterior aos navios da White Star Line. A relíquia da primeira foto segue exposta no 'Maritme Museum of the Atlantic', em Nova Escócia, no Canadá. Da mesma forma que no modelo do Titanic, este também era - e continua - iluminado. A diferença mais notória neste caso não está no modelo, mas nas trajetórias de ambos os verdadeiros navios representados pelo modelismo: O Titanic naufragou em sua primeira viagem, enquanto o Mauretania perdurou por longa e próspera carreira, e terminou os dias de sua espetacular trajetória no mar ao ser demolido na década de 1930. O modelo na segunda foto foi leiloado em 2015 por 50 mil Libras. Ao que se sabe atualmente pelo menos quatro modelos originais do Mauretania ainda hoje seguem preservados em diferentes localizações, tanto expostos quanto de modo privado.
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Fontes
titanic.memorial
alamy.com
americanhistory.si.edu
nationalmuseumsni.org
wikipedia.org
Jonathan Smith Collection
dailymail.co.uk
historicenglandservices.org.uk
Titanic, a modelmakers manual
"A Night to Remember" (1958)
Pesquisa, tradução e reedição de texto e imagens - Rodrigo, TITANIC EM FOCO
Distribuídas às dezenas ao longo das superestruturas dos
conveses cobertos ou ao ar livre de um transatlântico, as características
espreguiçadeiras [ou cadeiras de convés] foram – e continuam sendo - um convidativo recanto para o
navegante que após um passeio pelos conveses, se dá ao direito de numa delas se
recostar para tirar uma pestana, ou mesmo para tranquilamente repousar
esticando as pernas e lendo um bom livro.
Em 1912 as amenidades de bordo diferiam a centenas de milhas de distância do que hoje se apresenta nos cruzeiros de turismo, que seguem pingando aqui e nos portos de cidades ao redor do mundo sempre lotados e muito agitados. Atualmente o luxo de repousar numa espreguiçadeira se reserva a pouco mais que se esticar numa delas - em plástico ou metal – nas bordas de uma piscina movimentada. Inescapavelmente fotografando ou rolando o feed de uma rede social qualquer num smarthphone. Esta última opção no entanto estava a décadas de alcance quando em 1912 o navio que nomeia este blog se fez ao Oceano Atlântico, carregado de 2.200 pessoas indo em direção ao Novo Mundo, a América do Norte, terra das oportunidades.
De feitio de madeira e articuladas para maior conforto, as
espreguiçadeiras estavam para os passageiros assim como os chaminés estavam
para os transatlânticos de outrora... eram um ícone daquelas longas viagens marítimas do
início do século XX, onde o tempo escoava displicentemente tocado pela brisa e
o som do mar ao ser sulcado e vorazmente revolvido pelas colossais hélices de bronze à ré da embarcação, impelindo o monumento de aço adiante a pouco mais de 40 quilômetros por hora.
Dias antes de se converterem em raros espólios de um desastre - quando avistadas flutuando no mar misturadas
aos pesarosos despojos humanos daquele infeliz desfecho da viagem inaugural do
Titanic - as inconfundíveis espreguiçadeiras do maior navio do mundo em 1912 acolheram preguiçosamente
os esperançosos navegantes naqueles únicos 5 dias frios de abril, quando envoltos por uma
confortável manta fornecida pela companhia White Star Line, os embarcados na primeira e
segunda classes repousavam tomando algo quente, desenvolvendo uma boa prosa acerca da vida, sobre amenidades e talvez refletindo sobre o futuro próximo. Assim aguardando pelo esperado desembarque previsto para o dia 17 de abril no cais de número 59 das águas do rio Hudson em New York.
E é sobre este pequeno componente icônico e acolhedor do
Titanic que discorre esta matéria. De maneira muito especial sobre a réplica
incrível de uma delas, executada com maestria pelo amigo e contribuidor do
Titanic em Foco, Victor Vila, fundador da SHBT, Sociedade Histórica Brasileira
do Titanic. Amigo este que em 2021 iniciou ele próprio e através de uma
cuidadosa pesquisa histórica, a reprodução de uma verdadeira réplica de uma espreguiçadeira do
Titanic, indiscutivelmente digna de apresentação em um museu.
Convidado por este editor que vos fala, Victor cede seu
depoimento sobre seu trabalho, recheado de boa vontade, paciência e
desafios que acrescentam em muito a aquele que é apreciador dos trabalhos
manuais, mas também para o leitor que, assim como este editor, aprecia a possibilidade
de compreender com mais intimidade como de fato foi a rotina comum a bordo do Titanic nos 5 dias anteriores à madrugada fatal em que
seu nome tomou outros sentidos, em face às vicissitudes do destino que o aguardava ali tão próximo desde que deixou a cidade de Southampton em 10 de abril para a viagem inaugural. Um destino velado apenas pelo tempo e o entrelaçar da cadeia de acontecimentos daquela esperada travessia.
Reclinado em uma espreguiçadeira, alguém não poderia imaginar nada disso naquele momento: havia espaço apenas para uma boa prosa, um cochilo sereno, o decorrer fluido das horas e a visão do Atlântico Norte sem fim que passavam graciosamente, enquanto o R.M.S. Titanic e seus ocupantes rumavam história adentro sem que ninguém suspeitasse de que forma.
Acima: Brochura publicitária 1911/12
Certa vez, o cineasta James Cameron proferiu em um documentário as seguintes palavras: “O Titanic é como um fractal: quanto mais você se aproxima dele, você consegue enxergar padrões completamente novos”. E para aqueles que de fato se comprometem em verdadeiramente “mergulhar de cabeça” nesse assunto, a tão famosa história do Titanic corre para tantas direções diferentes, que acaba nos levando a conhecer novos fatos, novos relatos, e acima de tudo, a vivenciar experiencias completamente inusitadas. A história que você irá acompanhar a seguir trata-se de uma dessas incursões que eu fiz a este vasto “Universo do Titanic”, talvez a mais inusitada que jamais fiz nos meus mais de 25 anos dedicados a esse tema.
Para quem não me conhece sou Victor Vila, tenho 31 anos, natural de São Paulo (capital) e também entusiasta, pesquisador e colecionador de história marítima em geral. Sou particularmente focado na história do Titanic e em todo o seu legado social e cultural, o que me levou a fundar em 2013, na companhia de ilustres colegas e amigos (inclusive o criador desse blog), a “Sociedade Histórica Brasileira do Titanic”.
Ao lado: Foto de uma brochura publicitária do Olympic, navio irmão do Titanic, publicada em 1922.
E falando nos amigos e colegas que fiz durante todos esses anos dentro dessa “Comunidade Titânica”, vale ressaltar a grande amizade que criei com o fundador aqui do “Titanic em Foco”, o Rodrigo Piller.
São seguramente mais de 15 anos de amistosidade, e nessas idas e vindas pudemos intercambiar muitas peripécias relacionadas a esse assunto que nos fascina tanto. Porém... particularmente um desses casos há muitos anos sempre me chamou a atenção, e acabou me inspirando a adentrar na jornada que lhes relato aqui: O Rodrigo construiu sozinho, com poucos recursos e informações, porém munido de muita criatividade e força de vontade, uma digna reprodução de uma das famosas Cadeiras de Convés (também conhecidas como “espreguiçadeiras” ou em inglês como “deck chair”) do Titanic.
Acredito que antes de prosseguir com meu relato, vale contextualizar aos leitores o que de fato são essas cadeiras. Essas espreguiçadeiras, geralmente feitas em madeiras nobres e resistentes a água como teca ou mogno, eram colocadas à disposição dos viajantes nos decks dos navios de passageiros em geral. No caso do Titanic, provavelmente como norma geral da Companhia White Star Line, passageiros de primeira e segunda classe poderiam alugar essas cadeiras para mero relaxamento pagando uma tarifa de US$1, privilégio exclusivo e, portanto, não concedido aos viajantes de terceira classe.
Abaixo - Um curioso detalhe histórico captado nesta foto tomada em 11 de abril de 1912 enquanto o Titanic fez escala na cidade de Queenstown (hoje Cobh) na Irlanda: Um sujeito que por suas vestes denota ser um passageiro, parece cochilar relaxadamente em uma espreguiçadeira posicionada na extrema ré do navio, na popa, área reservada aos passageiros de terceira classe, onde não havia a possibilidade de locação de cadeiras, uma comodidade disposta apenas para os hospedados na primeira e segunda classes. Apenas 3 dias e meio separavam esta visão serena aqui captada para que esta area do navio, a popa, se tornasse palco de uma batalha pela vida para os derradeiros ocupantes do Titanic que aqui se acumularam momentos antes do naufrágio.
As cadeiras eram dispostas ao longo do Convés de Botes e também do Convés A da embarcação, sendo que as do Convés A continham um número de demarcação para uma posição específica ao longo do tombadilho, e as do Convés de Botes possuíam uma plaqueta de metal parafusada no verso do encosto, onde o nome da pessoa que havia reservado aquela espreguiçadeira era inserido. A depender das condições climáticas, as cadeiras ficavam à disposição dos passageiros durante a maior parte das horas de luz do dia, sendo posteriormente recolhidas e agrupadas em seções específicas do convés durante grande parte do período noturno.
Ao lado: Dobradas e recostadas junto da plataforma elevada da Sala de Fumantes da 1ª classe situada no convés abaixo, uma série de espreguiçadeiras é fotografada em 11 de abril de 1912, enquanto o Titanic fez escala na cidade de Queenstown. A área aqui era destinada à segunda classe e, pelo que se sabe, não havia neste convés demarcações fixas obrigatórias para as cadeiras, certamente ficando a cargo da tripulação manter a ordem para liberar espaço para passeio.
Abaixo: O longo convés de passeio da primeira classe [de 165 metros de comprimento em ambos os lados do navio] aqui fotografado por volta das 9:30 da manhã de 10 de abril de 1912 [menos de três horas antes da partida], dia do início da viagem, ainda atracado em Southampton, Inglaterra. A quase ausência de pessoas é em função aos preparativos para a vagem, quando uma pequena seleção de repórteres foram admitidos a bordo, ávidos por um registro do novo navio da White Star Line. As dezenas de espreguiçadeiras prontas para uso estão posicionadas diretamente abaixo dos numerais demarcantes de suas posições obrigatórias; recurso eficiente para manter a organização dos conveses, considerando que ao que se haviam pouco mais de 600 espreguiçadeiras disponíveis no navio. As pequenas plaquetas aparecem aqui como os micro pontos claros posicionados em intervalos regulares ao longo das barras escuras fixas junto ao topo do convés.
Por serem consideradas um item de uso praticamente contínuo e comum da Companhia White Star Line, essas espreguiçadeiras eram fabricadas em grandes quantidades e eventualmente por empresas diferentes para atender a alta demanda, fazendo com que muitas vezes fossem construídas com características de design sutilmente variado. Podemos citar por exemplo os diferentes formatos das pontas dos braços, alguns assentos construídos com ripas de madeira e outros com uma tradicional trama de palha indiana (rattan), e mais notavelmente, alguns exemplares possuírem (ou não) a famigerada estrela de 5 pontas da White Star Line esculpida em baixo relevo no centro do encosto. Segundo o historiador do Titanic, Craig Sopin, foram identificados cerca de 12 designs diferentes dessas espreguiçadeiras abordo do navio, valendo ressaltar também que esses itens não eram considerados exclusivos da embarcação, podendo assim ser intercambiados entre outros navios da empresa.
Abaixo: Fotografado aqui ainda em 1911, no início de sua carreira ativa que perdurou 24 anos na mesma rota em que o Titanic naufragou, o convés do Olympic apresenta uma seleção de cadeiras de convés desorganizadas em função da inatividade do transatlântico ancorado em New York. Segundo Victor, mesmo aqui há uma variação de modelos, algo perceptível para o bom observador.
Ao lado - O Capitão Julien Le Marteleur.
Após o afundamento do Titanic na madrugada de 14 para 15 de abril de 1912, grande parte das espreguiçadeiras do navio, muitas intactas e outras danificadas devido a natureza agressiva do naufrágio, foram encontradas boiando no gélido Atlântico Norte, sendo algumas depois recuperadas por alguns dos navios que foram resgatar os corpos dos passageiros que pereceram na tragédia.
É de conhecimento entre os pesquisadores do Titanic que pelo menos 7 exemplares dessas cadeiras sobreviveram a passagem do tempo até os dias atuais, valendo destaque para duas particularmente bem preservadas: a que está exposta no Museu Marítimo do Atlântico em Halifax (Canadá) e que foi resgatada pelo navio CS Minia, e ao exemplar que pertenceu ao capitão francês Julien Le Marteleur, membro da tripulação abordo do navio CS Mackay-Bennett, e que hoje se encontra exposta no Museu Titanic Belfast, Irlanda do Norte.
Talvez como forma de embasar o argumento da variedade de designs das espreguiçadeiras que estavam abordo do Titanic, as 2 cadeiras anteriormente mencionadas apresentam assentos bem diferentes. Enquanto a cadeira exposta no Museu Marítimo do Atlântico possuí o assento tramado em palha indiana (rattan), a cadeira do capitão Le Marteleur apresenta uma versão constituída de pequenas ripas de madeira dispostas de forma paralela ao encosto da peça.
Tal característica reforça também a questão de que os assentos dessas cadeiras eram projetados para serem removíveis, pelo simples fato de que, por exemplo, se o rattan da peça ceder ou rasgar, ele pode ser substituído por outro ou eventualmente acarretar em uma troca completa do assento, como acredita-se que foi o caso da cadeira do capitão Le Marteleur.
Abaixo: Recuperada pelos tripulantes do navio lança cabos CS Minia, esta cadeira foi então presenteada ao Reverendo Henry W. Cunningham em reconhecimento de seu trabalho nos serviços funerais das vítimas do Titanic a bordo do Minia. Seu neto, David Waterbury de Kentville, Nova Escocia, a doou para o Museu Marítimo de Halifax, onde permanece exposta. Feita em mogno e outras madeiras nobres, teve seu assento refeito posteriormente. O Jornal Halifax Herald de 7 de maio de 1912 cita na ocasião: "Entre os artigos resgatados estava uma espreguiçadeira em boas condições"
Abaixo: O pesaroso lembrete do desastre aqui é fotografado na forma de espreguiçadeiras e cadeiras do salão de jantar do Titanic, recolhidas em número incerto pelos tripulantes do pequeno navio lança cabos britânico CS Mackay-Bennett enquanto encarregados da fúnebre e exaustiva tarefa de recolher os corpos das vítimas do desastre. O Mackay-Bennett foi fretado pela White Star Line e atuou por sete dias na área do naufrágio, recuperando 306 vítimas, das quais 116 foram sepultadas no mar em cerimônias religiosas que aconteceram a bordo durante aquele período. Numa análise superficial, é possível notar que os artigos resgatados aqui trazem visíveis marcas da dinâmica física desastrosa do afundamento que ceifou a vida de 1.500 pessoas.
Após toda essa contextualização, voltemo-nos para a minha jornada envolvendo estas interessantes espreguiçadeiras. Quando tomei conhecimento de que o Rodrigo construiu o exemplar dele sozinho, logo fiquei curioso para saber mais a respeito. Mais interessado ainda fiquei quando tive a oportunidade de visita-lo em abril de 2016 e ver a cadeira pessoalmente, bem como escutar as palavras do próprio criador sobre sua própria obra. É um artefato de se encher os olhos, e realmente me comoveu ouvir toda a jornada de experimentação, dificuldades e descobertas que o Rodrigo teve até alcançar o triunfo de seu produto final. Como grande entusiasta de arte, trabalhos manuais e do popular movimento DIY (Do It Yourself, traduzindo para o português: Faça Você Mesmo), desde aquele momento eu soube, que um dia, se tudo permitisse... Eu também criaria a minha própria versão deste item tão icônico relacionado ao Titanic!
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Ao lado: A mãe do oficial do Mackay-Bennett Cecil Stewart fotografada com uma das cadeiras recuperadas durante a missão de busca pelas vítimas. A família morava em Halifax, Nova Escócia, para onde foram levadas e sepultadas 150 vítimas em três cemitérios distintos da cidade portuária.
O desafio ao qual eu me propus não era nada fácil, pra não dizer quase insano: a cadeira precisava ser, pelo menos dentro dos meus padrões de exigência, o mais fiel possível a pelo menos um dos exemplares originais existentes resgatados do Titanic. Tudo isso considerando todas as limitações que possuo sendo uma pessoa comum, praticamente sem nenhuma experiência com marcenaria e sem ferramentas adequadas para o processo.
Com muita força de vontade, a partir de 2017, fui pesquisando a respeito desse tema, recolhendo informações e fazendo algumas descobertas interessantes. Muitos projetos de cadeiras “no estilo do Titanic” podem ser encontrados na internet, porém nenhum deles chega perto do design geral que as peças originais possuíam. Entretanto, tomei conhecimento de que a cadeira do Titanic que pertenceu ao Capitão Le Marteleur foi replicada e vendida em número limitado pelos seus proprietários em idos de 1998. Entrei em contato com eles na esperança de obter algum projeto ou molde das peças, porém infelizmente eles já não dispunham mais deste material, visto que as réplicas foram feitas em número limitado e com exclusividade na época. Não me deixei abater nessa primeira investida frustrante; eu realmente queria colocar em prática meu sonho de construir a espreguiçadeira do Titanic.
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Ao lado: Nestas cenas de "A Night to Remember" (1958), o chefe de panificação do Titanic, Charles Joughin, lança cadeiras espreguiçadeiras mar para que sirvam como dispositivos flutuantes para os náufragos que se lançaram dos conveses. A cena é baseada em depoimento verídico, Charles sobreviveu ao naufrágio e testificou suas atitudes, alegando que acreditava ter lançado cerca de 15 cadeiras na esperança de auxiliar os náufragos no mar gelado.
Segui procurando e pesquisando, até que pouco tempo depois encontrei aquela que seria a “estaca zero” de toda a minha empreitada: O “projeto perfeito”! Existe uma anedota que diz que, certa vez, o Museu Marítimo do Atlântico encomendou uma réplica de sua cadeira do Titanic a um marceneiro de Halifax, com o objetivo de coloca-la em uma exposição interativa, onde os visitantes poderiam se sentar e ter a sensação de estarem no convés do tão famoso navio. O museu permitiu que o marceneiro obtivesse medidas exatas da peça e criasse um jogo de gabaritos para seu projeto, porém com uma condição expressa: que os moldes fossem completamente destruídos após a finalização da cadeira, para evitar a criação de reproduções. O acordo foi feito e a cadeira foi construída, estando atualmente em exposição junto com a original. Mal sabiam eles que, com o uso de tecnologia e boa interpretação visual de fotografias, seria possível fazer um projeto praticamente perfeito de seu tão precioso artefato.
Criado pelo experiente marceneiro Tim Killen, proprietário da KillenWOOD, especializado em móveis de época e desenhos de mobiliário com qualidade de museu, o projeto que adquiri digitalmente é baseado na cadeira do Titanic exposta no Museu Marítimo do Atlântico, criado a partir de referências visuais e experimentações de ergonomia através de softwares 3D. Definitivamente, é o mais próximo que eu poderia chegar de ter informações originais sobre essa espreguiçadeira, e um belo ponto de partida para toda a empreitada que se seguiria depois disso.
Após a aquisição do projeto, enfrentei uma nova etapa: a conversão de todas as medidas ali expressas em polegadas para centímetros, bem como o estudo aprofundado dos gabaritos incluídos para, eventualmente, fazer algumas pequenas modificações estéticas no design de algumas peças.
Como disse anteriormente, o fato de eu ser uma pessoa com pouca experiência em marcenaria, e carecer das ferramentas necessárias para a feitura dessa cadeira, me trouxe um desafio extra: a necessidade de assessoria de uma marcenaria de móveis rústicos para pelo menos realizar os cortes e lixamentos brutos de todas as peças necessárias. Após esse processo, todo o restante da tarefa seria feito integralmente por mim.
Ao lado: Charles Joughin em "Titanic" (1997) lança uma espreguiçadeira a partir do convés de passeio. A cena não foi utilizada no corte final para cinema, e o padeiro foi interpretado por Liam Tuohy.
Encontrar uma marcenaria que topasse “comprar minha ideia” foi uma jornada pra lá de dificultosa, para não dizer quase impossível. Necessitava ser uma marcenaria de móveis rústicos, ou seja, que trabalha com madeiras reais ao invés de compósitos como aglomerados e MDFs. O grande problema nisso tudo, é que essas empresas já trabalham com projetos pré-estabelecidos e que são iniciados e finalizados por eles, não os interessando aceitar criar algo “pela metade” apenas para atender “aos caprichos” de um rapaz sonhador.
Nessa situação eu praticamente engavetei meu sonho por mais de 3 anos, até que no início do ano de 2021, eu finalmente encontrei quem me ajudasse! Faço questão de citar a “Realeza Móveis Rústicos”, marcenaria tocada pelos colegas Clodoaldo Silva e Wellington Santos e situada no Bairro do Rosário em Atibaia, cidade onde eu resido. Sem o apoio, paciência e amistosidade deles, esse meu “sonho maluco” não teria sido possível de ser feito. Dessa forma, inicia-se efetivamente a concepção e real construção da famosa espreguiçadeira do Titanic!
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A madeira que decidimos usar para o projeto é a Peroba Mica (Aspidosperma Polyneuron). Apesar dessa madeira ser considerada “De Lei” no Brasil, tendo a sua extração e corte protegidos por lei ambiental, os exemplares utilizados em minha empreitada são considerados “peças de descarte” de construções muito antigas, ou melhor dizendo, as famosas “madeiras de demolição”. Nessas condições, pode-se considerar a Peroba Mica “de demolição” uma madeira perfeita para esse trabalho. Ela é nobre, densa, resistente e, acima de tudo, de excelente custo benefício financeiro. Um ponto interessante a se refletir é que as madeiras de demolição, por conta de sua origem, têm a chance de ter até mais de 100 anos de idade desde sua extração original, ou seja, existe a possibilidade dessa cadeira ter sido construída com madeira tão velha quando o próprio Titanic, tornando toda essa experiência ainda mais imersiva!
A espreguiçadeira em si é composta de 35 peças de madeira, sendo 10 delas de cortes e ângulos retos. As outras 25, sem exceção, apresentam algum tipo de curvatura que necessita o uso de ferramentas específicas para a sua criação, como serra fita, lixadeira de bancada com eixo oscilante e tupia. Apesar de estar incumbindo parte dessa tarefa a meus colegas marceneiros, não fiquei apenas assistindo a todo esse processo de braços cruzados. Eu literalmente me dispus a trabalhar com eles, aprendendo assim muitas dicas e absorvendo informações que me seriam muito úteis nas etapas posteriores. Foram necessários alguns dias para a confecção crua de todas essas peças, e no final desta fase em diante, eu estaria completamente sozinho no prosseguimento e conclusão desta atividade.
A primeira tarefa que fiz ao chegar em casa com todos os componentes que precisava, por incrível que pareça, não foi partir para um trabalho braçal, mas sim para uma pequena, porém importante intervenção artística no meio da cabeceira da futura cadeira: o entalhe em baixo relevo da famosa estrela de 5 pontas da companhia White Star Line medido aproximadamente 4,6 cm. O bom de trabalhar com a peroba é que, apesar de ser uma madeira extremamente resistente, é suficientemente maleável a ponto de permitir que eu realizasse esse entalhe com um simples estilete de artesanato! Pode ter sido um pouco penoso chegar à profundidade ideal do baixo relevo, mas o esforço recompensou e muito!
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A próxima etapa foi realizar toda a furação necessária em todas as peças. Essa talvez foi a única tarefa que realizei sozinho com o auxílio de uma furadeira de bancada, a única ferramenta profissional que eu já possuía. Em seguida, iniciou-se o tedioso processo simultâneo de lixamento e colagem de alguns componentes da cadeira, com o objetivo de deixar alguns conjuntos em fase de pré-acabamento. Depois do uso excessivo de lixas de várias gramaturas, todas passadas a mão sem o uso de outras ferramentas, não era surpreendente que eu ficasse com as articulações das mãos bem doloridas, com a pele cheia de bolhas e as digitais dos dedos completamente desgastadas. Certa vez cortei feio o dedo ao utilizar uma pequena broca afiada para alargar os furos onde futuramente entrariam alguns parafusos. Não faz mal, afinal, são nos nossos melhores projetos que vertemos sangue, suor e lágrimas não é mesmo?
Em seguida, chegou o momento de selecionar e instalar as ferragens que manteriam toda a cadeira no lugar. O leitor deve estar perguntando se para esse projeto foi necessário algum tipo de ferragem diferente ou mandada ser feita sob medida? Nada disso! A espreguiçadeira é composta de 16 parafusos de cama convencionais com cabeça de fenda, 4 dobradiças de 3cm de largura (absolutamente essenciais que sejam nessa medida por conta da largura da peça em que vai inserida), e mais de 30 porcas e arruelas. Todos esses componentes podem ser comprados em qualquer loja de ferragens convencional.
Em algumas partes da cadeira, onde originalmente eram fixados parafusos soberbos, optei por trava-las com parafusos e porcas convencionais, facilitando assim alguma eventual desmontagem completa da peça sem causar eventuais danos ao material. Uma atenção especial merece ser dada as arruelas de borracha para telhas, que com muita criatividade foram inseridas entre as madeiras que compõe a articulação pivotante, com o objetivo de não gerar atrito entre as peças. Ainda no verso do encosto fixei, tal qual alguns exemplares originais, uma plaqueta de metal para a inserção do papel com o nome do passageiro que eventualmente alugaria essa cadeira.
Vale ressaltar que as cadeiras verdadeiras do Titanic possuíam ferragens em latão, metal nobre e mais caro se comparados com outros que são atualmente mais utilizados. Por conta dessa questão mais técnica, nem todas as ferragens que utilizei podem ser consideradas “autênticas” em sua aparência, porém cumprem exatamente a mesma função das originais.
Terminado todo este processo de lixamento, colagem e fixação de parafusos, porcas, arruelas e assessórios, começo a chegar ao final deste peculiar empreendimento! Apliquei a sola de cada perna da cadeira uma borracha, a fim de evitar desgastes e derrapagens indesejadas. Como acabamento de todo o madeiramento, optei por aplicar seladora seguida de um polimento com cera de carnaúba.
Em algumas partes da peça, por conta do lixamento bem fino, o brilho alcançado na madeira se tornou algo espetacular de se ver! Confesso que atualmente me arrependo de ter aplicado estes produtos, porque apesar de conferir grande beleza, acabou não protegendo a madeira contra a água, e, portanto, impossibilitando que eu deixe a espreguiçadeira eventualmente exposta a intempérie. De todo modo, o valor que dou a este artefato como “peça de museu” não permitiria que eu verdadeiramente fizesse isso.
Tudo finalizado? Ainda não! Faltava um elemento muito importante, verdadeiramente a última tarefa a ser cumprida em toda essa jornada de construção desde móvel icônico: o assento!
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Seguindo a rigor as especificações do artefato histórico original que me inspirou nessa jornada, a cadeira do Titanic exposta no Museu Marítimo do Atlântico possui, como mencionado anteriormente neste texto, o assento tramado em palha indiana (rattan). Por mais que se soubesse que esse assento original foi recondicionado ainda em 1912 pós resgate da espreguiçadeira (alega-se que ela foi encontrada com o assento rasgado), era meu dever apresentar a minha versão da cadeira com o assento na mesma configuração pós recondicionamento.
Confeccionar móveis com trama em palha indiana é um ofício muito antigo e uma arte por si só, curiosamente ainda muito popular aqui no Brasil. Para cumprir com o meu objetivo, precisei realizar ampla pesquisa e assistir vídeo aulas para aprender a executar este trabalho em minha obra.
Segundo a tradição, o rattan, fibra natural extraída de palmeiras tropicais, necessita ser deixada de molho em água antes de ser aplicada aos móveis, com o objetivo de tornar a fibra mais maleável e resistente. Esta prática, por ser considerara mais purista e reservada aos verdadeiros profissionais dessa arte, certamente não estava ao meu alcance de execução, e por conta disso, precisei buscar uma solução viável para mim. Foi assim que descobri o rattan sintético: mais barato, mais fácil de manusear e mais resistente por ser feito de plástico. ...................................
Toda a trama foi feita na armação do assento da cadeira, medindo 54cm x 41cm e contendo 108 furos de 5mm cada. Procurei ter máxima atenção aos detalhes, com o objetivo de replicar o exato padrão da espreguiçadeira original. No final o objetivo foi cumprido, e o assento ficou extremamente maleável e resistente. Pelo menos até aquele momento.
Ao encaixar a armação do assento no seu devido lugar, foi com imensa emoção que dei por concluído o meu trabalho! O meu sonho estava praticamente realizado, faltava apenas fazer uma única coisa: me sentar na cadeira! Ao fazer isso, meu entusiasmo durou menos de 10 segundos... escutei um estalo horrível vindo do assento! Me levantei rapidamente e com cuidado para ver o que havia acontecido, mas visualmente parecia não haver nada de errado.
Eis que, ao remover o assento encaixado, me deparo com uma visão aterradora: a peça rachou de fora a fora na parte de baixo do lado direito, sendo apenas mantida unida pela forte trama da palha indiana que eu havia realizado. Acredito que ela se quebrou talvez por alguma imperfeição no veio da madeira, ou talvez por alguma folga presente no encaixe. De todo modo, não havia outra forma de recuperar essa parte a não ser construindo uma nova para substitui-la.
Levaria ainda quase 1 ano para que eu viesse a construir essa nova peça, e além de faze-la com mais atenção ao encaixe e a qualidade da madeira, eu confeccionei 2 pequenas peças que, mesmo discretas e sem comprometer o design geral da cadeira, garantem a segurança total do assento para que ele não se quebre novamente.
Dei meu projeto como finalizado em julho de 2022, realizando um vídeo explicativo sobre toda essa empreitada, e que hoje pode ser visualizado no canal da Sociedade Histórica Brasileira do Titanic no YouTube. Finalmente, depois de quase 5 anos de idas e vindas, tornei meu sonho uma realidade, uma jornada que me trouxe inúmeros ensinamentos, bem como experiências dentro e fora do Universo do Titanic que jamais esquecerei!
Para deleite do leitor, deixo aqui uma ficha técnica com dados de minha reprodução da Cadeira de Convés do Titanic:
Cadeira de Convés / Espreguiçadeira / Deck Chair;
100% dobrável, com 6 pontos de articulações pivotantes;
Medidas A x L x C quando aberta: 87,9cm x 65,4cm x 134,9cm;
Peso aproximado: 15 kg;
Assento tramado em palha indiana (rattan sintético);
Gravação da estrela da White Star Line esculpida em baixo relevo no encosto;
Constituída de 35 peças de madeira Peroba Mica;
16 parafusos de cama em fenda;
4 dobradiças;
32 porcas, sendo 14 em latão;
28 parafusos philips de diversos tamanhos;
20 arruelas, sendo 10 em latão;
6 arruelas de borracha para telhas;
Pés emborrachados
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CURIOSIDADE: 15 quilos podem parecer um peso pequeno para uma cadeira deste porte, entretanto, fiquei muito surpreso ao constatar que na prática, a peça é bastante pesada! Isso me chamou bastante a atenção, pois sempre que assistia aos filmes que contavam a história do naufrágio do Titanic, incluindo o épico de 1997, observava sempre atento os passageiros e tripulantes arremessando com enorme facilidade as cadeiras de convés borda a fora do navio! Eram essas espreguiçadeiras feitas de material mais leve apenas para fins representativos? Ou simplesmente a madeira utilizada na sua construção era menos pesada e densa do que a que eu utilizei para meu projeto? Espero um dia poder esclarecer essa curiosidade técnica, visto que, curiosamente, a cadeira de meu amigo Rodrigo também é tão pesada quanto a minha!
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Algum tempo depois de encerrada essa minha jornada, fui agraciado pela minha querida mãe com um belo complemento para minha espreguiçadeira: Uma manta em tecido de algodão, em formato quadrado, com o logotipo da White Star Line bordado a mão em um dos cantos! Apesar de não ser uma réplica exata, é fortemente inspirada nas mantas originais que eram distribuídas aos passageiros do Titanic enquanto utilizavam as espreguiçadeiras da embarcação. Seja para ler um livro ou tomar um pouco de sol em minha cadeira em pleno inverno, esta manta foi uma tremenda adição a minha coleção, item que guardarei com muito carinho não só por todo seu simbolismo e agregação histórica, mas por ser uma carinhosa demonstração de afeto de minha mãe para comigo!
Ao lado: Trazendo ainda em seu olhar a vívida lembrança do desastre, as passageiras sobreviventes da segunda classe, Charlotte Collyer e sua filha Marjorie, são fotografadas em Idaho, EUA, apenas um mês após o naufrágio. Charlote perdera seu marido, Harvey Collyer. A manta sobre seu colo com o logotipo da White Star Line, teria sido refúgio do frio, quando ela e sua filha embarcaram no bote salva vidas de número 14.
E assim, como encerramento, gostaria de lhes deixar uma pequena reflexão... Criar este artefato tão emocionalmente conectado a história do Titanic, para além de todos os acontecimentos positivos que relatei aqui, também me trouxe uma sensação bastante única... Ao me sentar neste conjunto intrincado de madeiras e metais, que nenhum valor tinham antes de eu empregar tanto amor, energia e dedicação, simplesmente criou um portal, uma conexão entre meu presente e um passado que, de todo o meu coração, sempre acreditei ter em minha alma: eu estar abordo daquele que foi o maior e mais luxuoso navio do mundo em 1912!
Gostaria de agradecer primeiramente ao grande amigo Rodrigo, por me convidar a relatar essa jornada que foi tão especial em minha vida; a minha família que, em qualquer circunstância que seja, sempre me apoiou em meus projetos e ideias; Aos colegas e amigos entusiastas da comunidade do Titanic, que não só me incentivaram como forneceram inúmeras informações interessantes sobre as cadeiras de convés do Titanic, em particular ao colega colecionador Steve Santini, proprietário de pelo menos 3 espreguiçadeiras originais e que hoje estão em diversas exposições do Titanic na América do Norte.
PS: Poucas semanas após ter finalizado a cadeira, em Julho de 2022, eu recebi com bastante carinho o convite do amigo Bruno Sena, talentoso cineasta e produtor audiovisual, para participar como consultor e figurante de um curta metragem de sua produção, que busca fazer uma paródia do filme “Titanic” de 1997. A obra foi batizada de “Shortanic”, e apesar de ainda não estar 100% finalizada até a data da publicação deste relato, precisou de bastante dedicação e entrega de seus participantes para a gravação de suas cenas. Obviamente, com um artefato recém construído e tão diferente quanto interessante em mãos, não poderia deixar de oferecer minha espreguiçadeira como objeto cenográfico para alguns takes dessa produção, fato esse do qual me orgulho muito. As cenas foram gravadas em um estúdio na EBAC (Escola Britânica de Artes Criativas) em São Paulo, e tanto eu quanto outro querido amigo, o Bruno Piola, pudemos atuar como figurantes também! Deixo aqui alguns registros deste dia tão especial, onde sentado em minha cadeira, vestido a caráter e envolto em uma gigantesca tela de chroma-key, me imagino estar abordo de um Titanic digno das mais altas proezas do diretor James Cameron!
Créditos
Depoimento e imagens do acervo pessoal de Victor Vila. Edição de imagens e de texto por Rodrigo Piller, Titanic em Foco.
Fontes
collections.nationalmuseumsni.org
wikipedia.org
titanicdeckchair.com
www.dailymail.co.uk/
thediscerningtravelers.com/
Titanic in Photographs
RMS Olympic 1923 brochure
henryaldridge.com
www.masslive.com
"A Night to Remember" (1958)
"Titanic" (1997)
Acervo particular de Rodrigo Piller
Acervo particular de Victor Vila
Agradecimentos
A João Gonçalves, pela contribuição com imagens.
Ao amigo Victor Vila pela amizade, contribuição e pela cessão de seu depoimentos e fotos, bem como o auxilio indispensável para a edição desta matéria.