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quarta-feira, 25 de março de 2020

O Titanic e sua arquitetura no contexto social de seu tempo

  Após um longo período sem atualizações, a matéria presentada a seguir é uma grata contribuição ao blog, editada pelo amigo e leitor Fillipe Azevedo, estudante de arquitetura que faz um passeio pelas fontes de inspiração arquitetônica utilizadas pelos construtores do Titanic no que se refere à decoração dos interiores deste navio que marcou o século XX em virtude do desfecho trágico de sua viagem de inauguração, mas também pelo conforto e ineditismo do luxo que ostentava nos ambientes interiores destinados o mais afortunado grupo  de  passageiros hospedados no que era tido naquele tempo como um palácio flutuante.
 
O Titanic e os demais navios da classe Olympic foram concebidos no clima industrial e otimista da Era Eduardiana*, mas para entender as linguagens estéticas dentro deles precisamos fazer uma análise temporal da sociedade nos séculos anteriores. A revolução industrial já acontecia desde o fim do século XVIII, e havia aprimorado os meios de comunicação, produção de bens de consumo, construção civil, e claro, os meios de transporte. O século XIX seguiu marcado por desenvolvimento e estabilidade econômica em diversas nações, além de considerável paz. Mesmo com a fome na Irlanda nos anos 1840 e guerras em vários países, como a guerra civil americana ou a guerra do ópio, nações imperialistas como o Reino Unido seguiam firmes com um enorme domínio ao redor do globo.

*“Período que sucede a Era Vitoriana e antecede a primeira guerra mundial. Essa época recebeu nomeação diferente ao redor do globo, sendo na França compreendida como parte da Belle Époque, e nos EUA como a Gilded Age.”

No fim do século XVIII a Europa vivia o auge do gosto clássico na arquitetura, derivado principalmente da influência iluminista,das escavações em Pompéia e dos escritos do renascentista Andrea Palladio. Esta época trouxe edifícios imponentes como o Royal Crescent, em Bath, o Petit Trianon em Versalhes, o Panteão de Paris e muitos outros, gerando estilos como o Georgiano, o Neoclássico e o Neogrego.

Panteão de Paris – exemplo de arquitetura neoclássica

Contudo, No século XIX, a sociedade foi aos poucos abandonando o racionalismo e a simetria clássica por a uma visão mais romântica de mundo. As guerras napoleônicas e o consequente isolamento do Reino unido e seus aliados fizeram com que várias nações olhassem para si e sua própria história. Nesse mesmo período o romantismo e o gosto pelo pitoresco (que já era apreciado nos jardins), deram força a idade média e sua estética, em detrimento ao passado greco-romano.

Essa busca pelo passado medieval poderia ser interpretada tanto como um nacionalismo bucólico quanto como uma reação a modernidade. No Reino Unido em especial, nação berço do Titanic, e cuja riqueza era a maior da época, o neogótico tornou-se uma manifestação física do orgulho britânico por sua história e arquitetura. 

Estação de St. Pancras, exemplo de Neogótico
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Neste contexto edifícios como o Ward Castle (construção de duas faces distintas, uma neoclássica e outra gótica), na Irlanda do Norte, mostram que o clássico, que nunca foi totalmente abandonado,estava disputando lugar com a ascensão do gótico. Edificações como o Palácio de Westminster e a estação de St. Pancras, ambas em Londres, deixam claro o sucesso do revivalismo gótico, alimentado pelas ruínas da dissolução dos mosteiros e demais construções do gótico tardio. Além da idade média o oriente também serviu de inspiração, fazendo surgir desde o século XVIII edifícios como o Senzicote e o Pavilhão Real em Brighton.

Palácio de Westminster

Pavilhão real de Brighton – Inspirações orientais

O neogótico perdurou por todo o século XIX, contudo é nele que o ecletismo na arquitetura teve seu apogeu. Os revivalismos começaram a ser misturados ou reinterpretados de uma forma mais descontraída, revestindo edificações de estrutura moderna com decorações historicistas que bebiam nas mais diversas fontes. Nesse contexto o eclético entra em vigor, e a variedade de elementos arquitetônicos e decorativos faz com que as construções se tornem extremamente ornamentadas, como vemos na Ópera Garnier, nos edifícios de estilo Belas Artes, no castelo de Neuschwanstein, na Catedral de Westminster, no Ayuntamiento de Madrid, e em diversas outras obras do século XIX e início do século XX.
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Ópera Garnier - Eclético que bebe principalmente no Barroco
Escadaria na Ópera Garnier
Castelo de Neuschwanstein – Neorromânico com certo ecletismo

As cidades passaram a ser formadas por uma mescla de estilos, numa exuberância ornamental que navegava por traços clássicos, góticos, neorromânicos, neobarrocos, neobizantinos, haussmanianos e muitos outros. Diversas combinações poderiam ser feitas dependendo do propósito de uma edificação ou decoração. Havia muitas opções aceitáveis, e as casas eram profusamente decoradas; suas paredes internas eram revestidas em papéis e painéis ornamentados, e as externas com colunas, estatuetas, urnas, cornijas e outros elementos. A revolução industrial barateou o custo de diversos bens de consumo, e os lares mostravam a riqueza de seus donos no uso de quadros, abajures, estatuetas, relógios, arandelas, tapetes, cortinas, fotografias, tapeçarias, móveis variados e uma gama de objetos. Vemos isso claramente na casa preservada do cartoonista Edward Linley Sambourne e sua esposa Marion, em Londres.

Palácio de Cristal de John Nash
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Além da estética as edificações poderiam atingir escalas monumentais nunca antes vistas, já que as estruturas em aço ou concreto armado possibilitavam construções rápidas, vãos imensos e diversos andares. O Palácio de Cristal de John Nash (construído para a grande exposição de 1851 que expôs os frutos da modernidade), a Torre Eiffel  e até mesmo as estufas de jardins são marcas disso, pois são pré-moldadas e puderam ser construídas com rapidez. O meio urbano das maiores metrópoles passou por diversas reformas, ganhando trens, esgotamento,cinemas, cabos telefônicos, iluminação pública e bondes elétricos. Em Paris uma infinidade de ruas medievais foi demolida sob as reformas do barão Haussmann, dando lugar aos boulevards largos e construções padronizadas que vemos hoje. As casas no conceito do subúrbio jardim ganharam força, e agora eram projetadas com uma maior preocupação no conforto, com recuos dentro do lote, higiene e ventilação.

Rue de rivoli – urbanização do século XIX de Haussmann
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Vale salientar que desde o século XIX o estilo eclético foi visto como frívolo e antiquado por seus contemporâneos. O Arts&Crafts, por exemplo, foi um movimento caracterizado pela valorização da produção manufaturada de inspiração gótica, e condenava o ecletismo por ser, em muitos casos, produzido em massa e com uma ornamentação sem fidelidade aos materiais construtivos. Quase como uma antítese a esse movimento surgiu no fim do século o Art Nouveau francês, que inovava por sua arquitetura e design industriais e sem ligação com o passado. Apresentava uma decoração orgânica e uso extensivo do vidro e metais, de forma que se contrapunha também ao historicismo eclético.

Woolworth Building NY
Saindo da arquitetura e do urbanismo é importante dizer que avanços na política e nos direitos civis marcaram o período. Muito ainda se mantinha, como a severa segregação de classes clara no Titanic; no entanto os avanços eram claros. A escravidão foi abolida em muitos países,surgiu a busca pelo direito dos trabalhadores e mais tarde a luta pelo sufrágio universal. 

No dia a dia a velocidade ganhou uma importância nunca antes vista,e a indústria revolucionou não apenas a produção em série como também a rapidez da entrega de produtos, possibilitando o comércio capitalista e a globalização. Nessa época os telefones e telégrafos reduziam as distâncias, e as viagens estavam cada vez mais rápidas com o advento do trem e do navio a vapor. Os relógios estavam presentes em todo lugar, e além de sua função prática mostravam a importância do tempo bem aproveitado, dos prazos e do compromisso, como vemos claramente no Titanic e na Elizabeth Tower.

Nas duas últimas décadas do século XIX o carro e a energia elétrica foram mais popularizados, e adentrando o século XX construções como o edifício Woolworth mostravam o poder da tecnologia com o nascimento dos primeiros arranha-céus. O mundo havia virado de ponta a cabeça em um século, e alguém nascido em 1820 viveu sua infância num contexto completamente diferente do de sua velhice. Em 1912 o Titanic ia recebendo seus toques finais, e ele era em si uma marca concreta de toda a sociedade que o rodeava.

Entalhes na Catedral de St Paul em Londres, feitos por GrinlingGibbons
Tanto ele quanto seus irmãos eram enormes máquinas a vapor oriundas da mais alta tecnologia industrial, apresentando no externo uma aparência austera e moderna, pontilhada com rebites e placas sólidas.

No entanto o Titanic e seus irmãos não eram produto de um gosto vanguardista, mas sim do que era apreciado pela elite eduardiana. Desse modo a decoração interior era eclética, mas em seu caráter opulento suas formas estavam longe de algo produzido em massa e sem cuidado. Na realidade a decoração do Titanic era a reprodução do que havia de mais luxuoso em terra, e o trabalho de Arthur Henry Durand foi minucioso. Em detalhes mínimos e cuidados com a simbologia e o uso dos estilos, os trabalhadores que decoraram o Titanic conceberam um exemplo de como o ecletismo, esteticamente, foi em muitos momentos feliz em seus resultados.

Interior de Hardwick Hall, mansão Elizabetana
Na escadaria podemos observara junção dos sóbrios painéis de carvalho com a opulência do barroco francês, somando ainda a leveza do clássico de Adam, na cúpula, com os entalhes rebuscados do barroco inglês de Gibbons e Wren. No salão de jantar da primeira e segunda classes (e até mesmo na sala de fumantes da primeira classe), observamos a rica decoração jacobina, que traz a memória entalhes e relevos encontrados em salões de casas Jacobinas e Elizabetanas como Lanhydrock House (revivalista em sua maioria), Hatfield House, Haddon Hall e Hardwick Hall.

Ao longo do navio podemos sentir o orgulho britânico e o romantismo, e percorrendo as suítes milionárias encontramos o revivalismo Tudor (derivado da arquitetura de elementos góticos e até mesmo renascentistas produzida na dinastia Tudor, majoritariamente entre os séculos XV e XVI). No convés de passeio particular observamos uma referência ao enxaimel inglês (que também marcou a dinastia Tudor e o vernáculo do período), com formas que nos fazem lembrar os padrões de casas de campo como Little Moreton Hall.

O orientalismo marroquino é encontrado no banho turco, e remete as diversas casas europeias que tinham salões decorados em estilos exóticos e curiosos ao olho ocidental. No lounge vemos mais uma vez a inspiração francesa, mas agora focando no gosto de um rococó reinterpretado de forma mais simples do que em palácios como Versalhes, Schonbrunn, Queluz ou Sanssouci. 

Interior em Haddon Hall
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Interior na Hatfield House, de estilo Jacobino
Na sala de leitura e em diversas áreas do navio a linguagem clássica predomina,esta que era encontrada em vários lares britânicos como Basildon Park ou Wrotham Park.

Nessas diversas formas de inspiração greco-romana, desde o neo-palladianismo até mesmo ao georgiano, as colunas variavam seus capitéis entre os estilos coríntio, toscano (próximo ao dórico) e jônico. Nos cafés a sensação de estar num jardim era alimentada pela decoração, que nos lembra dos caminhos treliçados em Versalhes. 

Sendo produto de seu tempo o Titanic tinha como um de seus propósitos conectar o mundo, e era fruto de uma época com  tecnologias que tornavam possível a um navio conforto e facilidades como a energia elétrica, comunicação a distância e sistemas de aquecimento. 

No início do século XX a prática de esportes já era vista como algo adequado e saudável, e podemos ver isso na presença da academia, da piscina e da quadra de squash, que como muitas inovações ainda não tinham um grande uso de decoração.

Treliças nos jardins de Versalhes
Interior em Schonbrunn, de estilo Rococó
Salão Neoclássico em Wrotham Park, Inglaterra

Mesmo com seu fim trágico este navio continuará nos inspirando! Não podemos esquecer de suas falhas e das vidas que pereceram  no naufrágio, mas ainda assim podemos extrair da arte e da beleza seus pontos positivos. Desse modo lembramos de todo o trabalho primoroso feito pelas mãos talentosas de artistas e construtores, que já partiram, mas que deixaram um legado que cruzou os mares e as barreiras do tempo.

Crédito:
 Texto por Fillipe Azevedo

Fontes:
REFERÊNCIAS  1.    JONES, Jenna. Tudo Sobre Arquitetura. 2014. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. 576 p. v. 1  2.    GLANCEY, Jonathan. A História da Arquitetura. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 240 p.  3.    COX, Pamela; HINDLEY, Emma; HOBLEY, Annabel. Servants: The True Story of Life Below Stairs. Part 1 of 3 - Knowing Your Place.. 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wqiMASk5MIU&t=1842s>. Acesso em: 17 ago. 2018.  4.    DE BOTTON, Alain. The Perfect Home - Alain de Botton [episode two]. 2006. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XaL8S7vRA2s>. Acesso em: 17 ago. 2018.

5 comentários:

Unknown disse...

Adorei o post! Muito bem escrito. Não sabia dessa parte do navio ter como um dos objetivos estéticos "conectar o mundo", muito interessante. As imagens estão lindíssimas, adoro o ecletismo na arquitetura. Abraço

Anônimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=H96p4LrmVHs&t=3s

Unknown disse...

Perfeita matéria! Agora nunca mais vou olhar o navio com os mesmos olhos de antes. Em cada parede, um significado!

Jose. A disse...

Olá a todos. Depois de tanto tempo...

Eu estava dando uma olhada geral neste 108º aniversário do Titanic e passei sem nenhuma esperança.

E eu não podia acreditar em ver essa matéria, pensei que o blog já estivesse morto e Rodrigo continuaria com sua vida pessoal.

São notícias extraordinárias. Sempre e para sempre até o fim, toda a minha força e meu apoio para que este blog lendário continue.

Matéria extraordinária para ser vista com calma.
Trabalho respeitável de coleta de pesquisas, para a matéria.

O fato de você continuar nesse caminho demonstra seu verdadeiro amor e lealdade pelo Titanic.

Até mais...

14 de Abril de 2020.

Saudações a todos. Obrigado.
Jose Aurelio.
Da Europa.

Gabriel Torres disse...

Nem consigo expressar o quanto fiquei feliz em ver esse post. Tanto pela qualidade que é padrão desse blog, quanto por ver que ele nao esta abandonado. Parabéns mais uma vez Rodrigo, e obrigado por continuar compartilhando seu vasto conhecimento conosco, depois de tantos anos. Abraço