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terça-feira, 29 de abril de 2025

Revista Veja, 14 de janeiro de 1998: "Titanic, a tragédia que ninguém esquece vira o grande filme do verão" | Momento nostálgico

Com direito a letreiro garrafal, e colocada nas bancas há 27 anos, em 14 de janeiro de 1998, a brasileira - e semanal - revista Veja anunciava a chegada aos cinemas de um filme, que já lançado em dezembro de 1997 nos Estados Unidos, vinha fazendo muito barulho ao redor do mundo, especialmente, é claro...na forma de muito choro e lágrimas vertidas no inverno do hemisfério norte e, naquela semana, prometia trazer lágrimas e suspiros também aos cinemas brasileiros. 

A capa da publicação com uma muito bem editada ilustração de autoria de um já aclamado Ken Marschall, - autor de um livro que inclusive foi base visual para as cenas de filme de James Cameron - trazia a visão de mais de uma centena de náufragos agarrados a um navio visivelmente condenado em posição inacreditável, suportados agora pela esperança e instinto de autopreservação, na agonizada espera do que viria mais adiante. 

Feéricamente ainda iluminado, o Titanic em inacreditáveis 45 graus naufragava na noite estrelada, sendo velado pelos ocupantes de dois de seus botes salva vidas. Certamente naquele momento, e ante ao barulho que a publicidade de "Titanic" vinha perfazendo nas mídias, especialmente na TV (recurso quase uni presente naquela época), a publicação de manchete tão impactante deixou as bancas para ir às mãos de leitores que muito dificilmente deixariam de se assentar numa cadeira de cinema para conferir o resultado daquilo que era descrito matéria de 6 páginas. Matéria que discorria então em uma análise bem equilibrada e inteligente acerca da produção Hollywoodiana do canadense James Cameron, mas também abordando habilmente a jornada cultural do Titanic através do tempo. 

A edição 1529 se tornou então e de maneira bastante óbvia, um número a ser colecionado para os cinéfilos de plantão, e com o passar dos anos acabou compondo o acervo dos entusiastas da história e legado do Titanic, e assim praticamente desapareceu. De modo que foram necessários mais de 15 anos para que o editor deste blog - que vos fala - conseguisse encontrar um exemplar íntegro para compor uma coleção.

Reconstruída agora na íntegra e como forma de saudosismo, acompanhe o que havia a ser dito naquele momento de expectativa sobre o filme que meses após ostentaria então 11 estatuetas do Oscar, entrando então definitivamente para os insólitos acontecimentos que populam definitivamente a memória e cultura popular ao redor do globo.


Revista Veja, edição 1529, 14 de janeiro de 1998. Matéria por João Gabriel de Lima e Geraldo Mayrink

itanic, que estreia nesta sexta-feira no Brasil, é um fenômeno quase tão espantoso quanto a tragédia em que foi inspirado. Dirigida por James Cameron, um mestre dos filmes de ação que tem em seu currículo O Exterminador do Futuro e True Lies, a fita é a mais cara produzida em Hollywood em todos os tempos. Numa estimativa conservadora, consumiu 200 milhões de dólares. Na história do cinema, só perde para uma produção soviética de 1968, uma adaptação de oito horas de duração do romance Guerra e Paz, de Leon Tolstoi, que consumiu 482 milhões de dólares e que, bancada pelo governo comunista, não precisava recuperar o investimento na bilheteria. 

Surge a pergunta: por que Hollywood, que não é subsidiada pelo ouro de Moscou, gastaria tanto dinheiro para recontar uma história que ocorreu h 85 anos, que já inspirou uma dezena de filmes e cerca de 100 livros e cujo final é conhecido por quase todo mundo? A resposta mais óbvia é esta: Hollywood confiou no fascínio inesgotável dessa velha história de naufrágio. E a prova de que Hollywood, mais uma vez, estava certa foi dada nas três últimas semanas, desde que o filme estreou em 2.660 salas de exibição dos Estados Unidos. As pessoas fazem filas de dobrar quarteirão na porta dos cinemas. Nos primeiros seis dias de exibição, o filme arrecadou 52 milhões de dólares. Nas primeiras três semanas, a renda alcançou 165 milhões. Nesse ritmo, Titanic avança, em velocidade de cruzeiro, para bater os dois maiores sucessos do ano passado Homens de Preto, com 243 milhões de dólares, e O Mundo Perdido, continuação de O Parque dos Dinossauros, que arrecadou 229 milhões.
 
É um desempenho e tanto para um filme que, dados os problemas de produção, parecia caminhar para bater o recorde oposto, o de fracasso mais retumbante da história do cinema. Enquanto Titanic engolia 45.000 dólares por hora de trabalho, o diretor Cameron, estressado, perdia tempo em brigas com os produtores e atores, inclusive os dois protagonistas, o galã Leonardo DiCaprio símbolo sexual adolescente desde que estrelou uma adaptação modernosa de Romeu e Julieta e a talentosa jovem atriz inglesa Kate Winslet, indicada para um Oscar por Razão e Sensibilidade e elogiadíssima por sua Ofélia no Hamlet de e Kenneth Branagh. 

DiCaprio gritava para quem quisesse ouvir que gostaria de afogar o diretor no tanque de água construído para as filmagens na Praia de Rosarito, no México. Kate Winslet pediu uma folga, não foi atendida, e seus advogados tiveram de arrumar um atestado médico para livrá-la de uma estafa. Tudo isso atrasou o filme, que deveria ficar pronto para as férias de verão americanas, em julho. Depois de fazer uma reportagem no set de filmagem, o jornal americano The New York Times escreveu espécie de obituário artístico de Cameron. Achava-se que o diretor teria o segundo fracasso de sua carreira. O primeiro, coincidência ou não, fora num filme igualmente náutico o chatíssimo O Segredo do Abismo, de 1989, que custou 50 milhões de dólares na época e não se pagou.
       
Chegou o inverno e Cameron saboreou sua vingança no frio. Diante da grandiosidade do filme, o mesmo The New York Times o elegeu como o melhor de 1997. Chegou a comparar Titanic a ...E o Vento Levou, escrevendo que desde o lançamento da adaptação do romance de Margaret Mitchell a indústria hollywoodiana não colocava no mercado uma produção de tanto impacto. A comparação com ...E o Vento Levou levou em consideração também o enredo do filme. Grande parte do sucesso de Titanic se deve ao apelo do par romântico principal. Cameron, que além de dirigir o filme também escreveu o roteiro, criou, tendo como pano de fundo o desastre, uma história de amor envolvendo uma menina mimada, com muito de Scarlett O'Hara ela gosta de pintura moderna e lê Sigmund Freud numa época em que ambas as coisas eram consideradas escandalosas , e um rapaz criado no submundo. Ambos são mal saídos da adolescência, o que faz da história de amor que se desenvolve no navio uma espécie de Romeu e Julieta sobre as ondas, potencializada pelo fato de que eles não se amam na plácida cidade italiana de Verona, mas num navio que todos sabem desde o começo irá a pique no final do filme.

O espectador americano enfrenta o frio nas filas na porta do cinema não apenas por causa de uma história de amor fictícia, mas principalmente devido ao apelo da tragédia original. No século XX, a humanidade viu vários desastres navais e aéreos, muitos deles de grande impacto visual como o do dirigível Hindenburg, que virou uma bola de fogo no céu em 1937, para terror dos que acompanhavam o espetáculo em terra -  ou de elevada carga dramática - como a queda de um avião uruguaio nos Andes em 1972, quando os dezesseis sobreviventes, incomunicáveis na cordilheira, tiveram de se alimentar da carne dos 29 que morreram. 

Nenhum deles, no entanto, se compara à tragédia do Titanic, a maior máquina construída até então, com 46.000 toneladas, 260 metros de comprimento -  em pé, teria a altura de um prédio de dez andares -, e para a qual se criou até um neologismo de gosto duvidoso: o "insubmergével" (unsinkable, em inglês). Pois esse símbolo da pujança da melhor tecnologia desenvolvida até então pelo homem nem precisou colidir com a natureza para que a supremacia desta última ficasse clara. Bastou um esbarrão do casco com um iceberg para provocar o naufrágio do navio, de maneira espetacular. 

Primeiro submergiu a proa, depois o navio rachou em duas partes e a metade da popa ficou em posição vertical, para depois também ir para o fundo como uma flecha furando o oceano. Enquanto isso, pessoas desesperadas mergulhavam no mar gelado, numa espécie de suicídio coletivo. Todo o processo do esbarrão no bloco de gelo à submersão final durou apenas duas horas e quarenta minutos. Menos que a duração do filme de Cameron, que tem três horas e catorze minutos. Dos 2.228 passageiros a bordo, 1.523 morreram.

Um mundo recriado - O impacto visual não seria suficiente para manter o Titanic vivo na memória da humanidade por quase um século não fosse também a pompa que cercou o navio. A bordo havia um resumo da sociedade da época. Na primeira classe, viajando do porto de Southampton, Inglaterra, para Nova York, já a maior cidade dos Estados Unidos, estavam figuras eminentes dos dois países. Entre elas, o banqueiro Martin Rothschild, o magnata do petróleo Howard Case e Alfred Vanderbilt, dono de uma das maiores redes de ferrovias dos Estados Unidos. 

A primeira viagem do Titanic foi uma espécie de acontecimento, numa época em que os homens de posses vestiam casaca para jantar, tinham criados pessoais e suas mulheres viajavam levando enormes baús abarrotados com suas melhores roupas e jóias caríssimas. O interior do Titanic, decorado como um hotel de alta classe, foi cuidadosamente preparado para servir de cenário a esse festival de ostentação. Dentro, havia a reprodução de um luxuosíssimo café parisiense, o banho turco era decorado com lâmpadas mouriscas e cada camarote tinha uma sala de estar em estilo elizabetano. Na segunda e terceira classes, cujas passagens custavam mais barato, viajavam pessoas pobres do sul e leste europeus com um sonho utópico do século XX: fazer a América.

Detalhes da reconstituição do navio: cópias de móveis e louças absolutamente fiéis aos originais. No Titanic, havia réplicas da decoração de cafés parisienses e os camarotes eram equipados com salas no estilo elizabetano.




Para reproduzir na tela esse episódio espetacular, o diretor James Cameron não economizou recursos. Encomendou cópias de louças e móveis absolutamente fiéis aos originais para espatifá-los no momento certo. Mandou fazer uma réplica da fachada do navio para as cenas externas (só a fachada; as cenas internas e do convés foram realizadas em estúdio), seguindo o projeto original do navio, desenvolvido num estaleiro de Belfast, hoje capital da Irlanda do Norte. Para filmar a cena do naufrágio, não recorreu a programas de computador, como Spielberg faria. Mandou construir um tanque de 64 milhões de litros de água, o equivalente a 33 piscinas olímpicas cheias. 

Engenheiros hidráulicos planejaram cuidadosamente a cena em que a carcaça submergiria no tanque. Se não desse certo, não haveria uma segunda chance para fazer a filmagem porque toda a estrutura se esfrangalharia no primeiro mergulho. Obsessivo, o próprio Cameron mergulhou doze vezes na costa da Nova Escócia, local onde o navio submergiu e sua carcaça foi encontrada há doze anos pelo navegador Robert Ballard. 

Dessa aventura, tirou inspiração para escrever as cenas iniciais do filme, que mostram um time de mergulhadores escarafunchando os destroços do navio em busca de jóias perdidas. A partir daí, a história é contada em flashback pela dona de uma dessas jóias, uma sobrevivente de 102 anos que, no passado, era a menina mimada interpretada pela bela Kate Winslet. Para representar a personagem idosa, Cameron recorreu à atriz Gloria Stuart, de 87 anos, uma veterana de filmes de John Ford que estava aposentada havia cinquenta anos.

Cantilena racista - Ocorrida à noite, a 700 quilômetros de distância da cidade mais próxima, numa época em que não existia televisão e a fotografia ainda era rudimentar, a tragédia do Titanic foi emergindo aos poucos, na forma dos relatos dos 705 sobreviventes. Uma história com tantas versões e tantos lances dramáticos poderia ser contada de várias maneiras.

Esses enfoques diferentes do mesmo acontecimento acabaram por conferir um interesse especial ao caso Titanic e são uma das razões que ajudam a explicar a permanência da imagem do navio na mente das pessoas. Cada época contou a história a seu jeito e extraiu dali uma moral diferente. Em três momentos do século a tragédia do Titanic foi exaustivamente explorada pela literatura e pelo cinema. O primeiro, claro, logo após o desastre. 

O primeiro filme sobre o Titanic foi lançado apenas um mês depois do naufrágio. Chamava-se Saved from the Titanic (Salva do Titanic) e baseava-se no relato de uma das sobreviventes, a atriz Dorothy Gibson, que, para dar credibilidade à produção, interpretava a si própria. O segundo momento foi o pós-guerra, quando começou a surgir no mundo uma nostalgia dos tempos em que os homens davam lugar às mulheres. E o terceiro, nos dias de hoje, motivado pela descoberta dos destroços do navio, em 1985.





Na obra A Cultural History of the Titanic Disaster (Uma História Cultural do Desastre do Titanic), lançada em 1996 nos Estados Unidos e ainda não traduzida para o português, o historiador americano Steven Biel se propõe a mostrar como cada época extraiu uma lição diferente do mesmo drama. Nos tempos do naufrágio, a história serviu para alimentar debates sobre racismo e feminismo. O ano em que o navio bateu num iceberg, 1912, foi o da maior passeata nos Estados Unidos das chamadas "sufragistas" as mulheres que defendiam o voto feminino. Usou-se o Titanic para atacá-las porque, no momento do naufrágio, prevaleceu a chamada "lei do mar" ou seja, numa situação de perigo, as mulheres e crianças são salvas em primeiro lugar. 




"Se as tais sufragistas estivessem no convés do Titanic, não clamariam por igualdade. Com certeza recorreriam, isto sim, à antiga instituição do cavalheirismo para ser salvas", escreveu um leitor do Baltimore Sun, jornal que atacava as feministas em editoriais. Claro que as mulheres não ficaram caladas. Lembraram que o navio era dirigido por homens, e acabou indo a pique. Uma charge publicada em jornais feministas sugere que o Titanic seria como os Estados Unidos se os homens continuassem em seu comando, sem a influência que as mulheres poderiam exercer pelo voto, poderiam bater num iceberg.




O ano de 1912 foi também de tensões raciais, com o surgimento de vários movimentos protestando contra o linchamento de 61 negros nos Estados Unidos. O Titanic acabou servindo de mote à cantilena racista, embasada em números que, examinados com olhos de hoje, dão a sensação de que a morte acabou sobrando para o lado mais fraco. Sessenta por cento dos integrantes da primeira classe sobreviveram, contra 44% da segunda e 25% da terceira. 

Os jornais da época viram esses números através de uma lente peculiar. O San Francisco Examiner lamentou em editorial que grandes personagens da elite americana como o banqueiro Benjamin Guggenheim, patriarca da família que hoje batiza uma griffe de museus, tivessem perecido para salvar a vida de "mulheres analfabetas do leste europeu".

Leonardo DiCaprio e Kate Winslet: James Cameron criou um Romeu e Julieta sobre as ondas para fazer contraponto às cenas de catástrofe

Romance arrebatador - Outros foram mais fundo no racismo, escrevendo que os "cavalheiros" da primeira classe mantiveram a calma até o final, enquanto os eslavos e latinos da terceira "se rendiam ao pânico e gritavam como cães ou porcos" (esquecendo de mencionar, claro, que em todo navio que afunda são os compartimentos de baixo que inundam primeiro).

Baseados nesse detalhe, vários escritores entre eles Conan Doyle, criador do personagem Sherlock Holmes redigiram textos exaltando a superioridade do homem anglo-saxão, com seu auto domínio, sobre o latino e o eslavo. Quem chamou a atenção para o absurdo desses artigos foi outro homem de letras, o irlandês George Bernard Shaw, que escreveu: "Um fato (o acidente) que deveria ferir seriamente o orgulho britânico acabou tendo o efeito oposto, ou seja, serviu de pretexto para a exaltação da raça anglo-saxã". E arrematou: "Em vez de envergonhados, os ingleses se tornaram insolentes e mentirosos, além de mostrar que acreditam em bobagens românticas".

Na política, o Titanic serviu de combustível a panfletos de todas as colorações ideológicas. Os socialistas bateram na tecla da prioridade dada aos ricos no salvamento para clamar contra a "injustiça social" e a "ganância do capitalismo". 


Cena do naufrágio: para reproduzi-lo com precisão, o navio foi mergulhado num tanque com 64 milhões de litros de água.


Até os nazistas deram um jeito de se aproveitar da história para construir uma fábula edificante a seu modo. Fizeram um filme em 1943 em que incluíram no naufrágio um oficial alemão, sábio e ponderado além, é claro, de fictício , que alertava os ingleses para o perigo que corriam com sua arrogância. 


No plano da ficção, o desastre forneceu combustível para dezenas de romances, o mais recente da festejada escritora britânica Beryl Bainbridge, que escreveu um livro com o sugestivo título de Every Man for Himself (Cada Um por Si). 

A autora de livros açucarados Danielle Steel, em Amor sem Igual (1991), usou a história do Titanic como pano de fundo para uma mescla de sacarose com a ideologia dos dias atuais. Sua heroína Edwina Winfield viaja com o homem de sua vida para se casar nos Estados Unidos, mas o navio afunda e ela permanece virgem (nada mais Danielle Steel). 

Depois de aportar no Novo Mundo, a donzela resolve reagir e se transforma em bem-sucedida mulher de negócios (nada mais "mulher anos 90" numa história do princípio do século). O filme de James Cameron faz uma súmula de todas essas representações do Titanic através dos tempos. 

Há ali cavalheirismo (reproduz-se na tela a famosa história segundo a qual Benjamin Guggenheim teria dispensado o colete salva-vidas e se paramentado com cartola e casaca para "morrer como um cavalheiro"), uma pitada de crítica social (são dramáticas as cenas em que os portões que dão à terceira classe acesso ao convés são fechados no momento do naufrágio) e também a condenação da arrogância, representada pelo capitão do navio, que teria aumentado a velocidade com o intuito de chegar mais cedo ao seu destino, sem ligar para os alertas da presença de icebergs. 

Nada disso, isoladamente, garantiria o sucesso do filme. É a combinação desses ingredientes com os impressionantes efeitos especiais na hora do naufrágio, sem esquecer o romance arrebatador dos dois personagens centrais, que faz de Titanic um programa de primeira. O sucesso do inverno americano tem tudo para ser o filme do verão brasileiro.

Fonte

Revista Veja, edição 1529, 14 de janeiro de 1998. Matéria por João Gabriel de Lima e Geraldo Mayrink
Reformatação de texto e imagens por Rodrigo Piller, Titanic em Foco

sábado, 26 de abril de 2025

As últimas fotos do Titanic: O precioso álbum das férias da família Odell


Acima: Uma fotografia assinada por Jack Odell em 11 de abril de 1992, o octogésimo aniversário do naufrágio. 

Por conta de sua curta vida útil interrompida pelo naufrágio durante a viagem inaugural, fotografias realmente tiradas a bordo do Titanic são relativamente poucas em número. A maior contribuição em fotos vem das mãos habilidosas do passageiro de primeira classe Francis Browne, um professor de 32 anos de idade e candidato a sacerdote jesuíta que navegou no Titanic de Southampton para Queenstown. Afortunadamente para a história, ele levou sua câmera fotográfica consigo, e suas fotografias formam um registro pictorial de valor incalculável. Mas as fotografias da família Odell somam também grande valor ao arquivo de raras fotos tiradas daquela viagem para dentro da história.

Nesta matéria conheça um pouco mais sobre a família Odell, passageiros temporários do Titanic e as imagens finais desta travessia histórica. Captadas despretensiosamente durante uma estadia de pouco mais de 24 horas a bordo do Titanic, elas se tornariam então, frente às circunstâncias daquela viagem não concluída, alguns dos registros fotográficos mais valiosos relacionados ao transatlântico que nomeia este blog. 

Levados pela empolgação daquela curta travessia num navio novo em folha, e pelo diletantismo pela fotografia, os Odell fotografaram sem saber um momento histórico crucial da curta trajetória do Titanic, quando ainda ao deixar o porto de Southampton no primeiro dia da viagem, foi livrado por um triz de um potencial cancelamento da viagem inaugural.

Jack Odell, de 11 anos, sentiu um grande entusiasmo quando sua mãe anunciou que fariam uma viagem pela Irlanda. Uma viagem de carro era uma maneira relativamente nova de tirar férias em 1912. Começaria quando a escola de Jack estivesse de férias de primavera. Como todos os meninos de 11 anos, Jack mal podia esperar por esse evento. E seria em abril de 1912 que a viagem pela Irlanda aconteceria. A família havia alugado um carro que retirariam na Irlanda e então passariam os próximos dias viajando pelo país. O carro foi locado em Johnson & Perrott, Emmet Place, Cork, com número de registro PL 102. E esta é a história do início de sua viagem.

Herbert Odell era o nome de seu pai. Sua mãe se chamava Lilly. Eles tinham um negócio familiar no mercado de peixes de Billingsgate e moravam em Londres, em uma grande casa vitoriana de cinco quartos. Negociavam sob o nome de James Bell and Company. Richard Odell comprou o negócio na década de 1840. Ele se desenvolveu numa época em que Billingsgate controlava todo o comércio de peixe fresco na Grã-Bretanha. O pai de Jack era um membro sênior da Fishmongers' Livery Company na cidade de Londres. Ele inicialmente comprou as passagens, incluindo uma passagem para si mesmo, mas acabou desistindo das férias, pois estava viajando a negócios em Birmingham. O ticket comprado por Herbert  era de número #84, com valor de £24. Era considerado moda ser o primeiro a embarcar em qualquer novo tipo de viagem, como uma viagem inaugural em um transatlântico, da mesma forma que ir à estreia em um teatro em Londres. Jack então embarcou com sua mãe, sua tia Kate e seus dois tios. O grupo incluía também um futuro padre jesuíta chamado Francis Browne, que estava no Titanic como convidado de Lily Odell, mãe de Jack.

Ao lado: Lilly Odell com o pequeno Jack vestido como marinheiro. 

O hobby da família era a fotografia. Jack, Kate e o Francis Browne tinham câmeras. Sem que soubessem na época, eles se tornariam parte de um famoso evento histórico. Suas fotografias registrariam esses momentos e se tornariam famosas por sua autenticidade e singularidade.

Uma viagem à Irlanda, naquela época, como hoje, envolve uma travessia marítima, embora hoje seja possível voar até lá. Apesar disso, ainda é popular pegar um barco para um porto galês e viajar de navio para a Irlanda. Em 1912 essa era a única maneira de chegar à Irlanda.

Os Odell não planejaram a viagem de ida exatamente dessa forma. Eles não viajariam para o País de Gales de trem para embarcar na travessia marítima até a Irlanda. Em vez disso, reservaram assentos no trem-marítimo para Southampton. Em seguida, viajariam em um transatlântico para a Irlanda. Uma vez na Irlanda, fariam um passeio em um carro locado, um modelo chamado Star Landaulette. 

A viagem de volta seria a travessia convencional do Mar da Irlanda até Swansea e depois de trem para Londres. O pai de Jack seguira o conselho de seu irmão Richard, que era diretor da companhia de navegação, de reservar as passagens do transatlântico com antecedência. Era a viagem inaugural do navio e estaria bem lotado. Todos ansiavam pelo passeio e por fazer parte da viagem inaugural de um navio, mesmo que fosse apenas a primeira parte da viagem.

Ao lado: Francis Browne segura em suas mãos o objeto de seu hobby, uma câmera fotográfica, algumas décadas após ter passado pelo Titanic. Na inserção Browne é fotografado enquanto mais jovem, por volta da época em que esteve no Titanic. Francis Browne veio a se tornar um fotógrafo prolífico, deixando uma herança fotográfica de mais de 42 mil fotografias sobre temas variados cujo valor é inestimável.

Finalmente chegou o dia de começar as férias. Era quarta-feira, 10 de abril de 1912, e Jack, sua mãe e a tia Kate viajaram de táxi de sua casa em Wimbledon até a estação ferroviária de Waterloo. Lá, Jack encontrou seus tios e o padre Browne. Havia bastante tempo antes do trem partir para Southampton, então Jack observou seu tutor, o padre Browne, a tirar fotos do trem. Às 10h, o trem partiu de Waterloo. A viagem levaria pouco mais de uma hora. Foi uma viagem emocionante e Jack olhava pela janela enquanto as cenas do campo passavam rapidamente. Jack se divertiu com as histórias engraçadas que seus tios e Browne contaram e também ajudou o missionário Browne a tirar fotos no trem durante a viagem para Southampton.

Por fim, o trem chegou ao lado do transatlântico. Era o Titanic, e por um tempo Jack não percebeu a grandeza do navio. Ele estava com Francis Browne quando embarcaram e foi então que viu o tamanho da embarcação. Era o navio mais alto que ele já vira. Jack ficou impressionado e hipnotizado com o transatlântico elevando-se sobre o cais de Southampton. As histórias que ele ouviu sobre o Titanic eram verdadeiras e era certamente o transatlântico mais luxuoso daquele tempo. Ele estava cheio de alegria por embarcar naquele navio para a Irlanda.

Abaixo: Nesta fotografia colorizada de Jack Odell o destaque fica por conta de sua câmera, uma Kodak No 1a, special model D pronta para fotografar. A foto foi tirada pela sua Tia, Katy Odell, e é com exclusividade a única foto tirada a bordo do Titanic que mostra alguém portando uma câmera fotográfica.

A primeira coisa que todos fizeram foi procurar suas cabines no convés B, onde reservaram três suítes (embora hoje não se saiba quais foram as acomodações escolhidas pelo grupo). Assim que as encontraram, Jack encontrou sua tia e o Padre Browne e, munidos de suas câmeras, eles subiram ao convés para tirar fotos. Foi nesse momento que o Padre Browne tirou a primeira de suas famosas fotos mostrando a vida a bordo do Titanic. Eles, como muitos dos passageiros, devem ter visitado o ginásio e experimentado os equipamentos esportivos disponíveis. Caminharam pelo convés rindo e aproveitando o primeiro dia de férias.

Ao lado: Nesta foto autografada no ano de 1992, Jack Odell posa numa das escadas de acesso à ré no lado bombordo ao teto elevado do Lounge da 1ª classe no convés de botes. No momento do autógrafo Jack teria então 91 anos de idade, tendo nascido no ano de 1900. Ao fundo é possível observar a plataforma da bússola auxiliar, alocada dentro da plataforma elevada com proteção de lona corta vento. O ponto em que Jack posa aqui o coloca nas bordas do epicentro da quebra do Titanic em duas partes pouco após as 2:00h da manhã em 15 de abril de 1912, foi a partir desta locação que o navio se rompeu em dois antes de afundar. Na animação abaixo, a exata localização da extinta escada onde Jack pousou para sua foto a bordo, nesta ilustração executada pelo aclamado artista Ken Marschall, especialista mundial sobre as questões visuais do Titanic. Acesse AQUI



Eles não se importaram com a brisa fria do mar que lhes queimava as bochechas; estavam muito interessados ​​em tirar fotografias. Todos tiravam fotos uns dos outros posando no convés. Parece que a única fotografia que sobreviveu das poses individuais da família foi a que Kate Odell tirou de Jack. Ela o mostra usando um boné e um sobretudo longo. Todos permaneceram no convés para assistir ao Titanic deixar o porto e navegar pelo rio Test adiante. Esta parte da viagem tinha acabado de começar quando outro transatlântico se soltou de suas amarras e entrou na trajetória do Titanic. A tia de Jack, Kate, e o padre Browne fotografaram este quase acidente que foi evitado por muito, muito pouco. 

Abaixo e ao lado: Ao passar ao lado dos navios RMS Oceanic e SS New York, atracados lado a lado nas docas 38 e 39, a sucção de seu poderoso deslocamento causa o chamado “efeito canal”, fazendo balançar o navio New York, que arrebenta seis grossos cabos de amarração de 15 cm de diâmetro. O New York então se movimenta perigosamente com a popa em rota de choque contra o costado de bombordo do Titanic. No derradeiro instante a colisão é evitada pelo rebocador Vulcan, que alcança um cabo arrebentado do navio a deriva. A popa do New York deixa de atingir o casco do Titanic por escasso 1,20 m. Apesar da situação de alto risco, ambos os navios saem ilesos.  Este incidente, junto com a anterior colisão entre Olympic e Hawke em 1911, indica uma falta de familiaridade - dos responsáveis por manobrá-los - com navios de tal porte. Comprovando a autenticidade das fotos, é possível ver em pelo menos duas delas uma fração do castelo de proa a bombordo no Titanic, captado pela fotógrafa Kate Odell que estava a bordo deste último.



Ao lado: A espessa corda rompida pelo movimento do Titanic, que atada ao navio SS City of New York o prendia em posição adjacente ao RMS Oceanic, também atracado no mesmo ponto. O cabo foi habilmente capturado pelos marinheiros a bordo do rebocador Vulcan, evitando assim uma colisão entre os dois navios. Esta foto no entanto não foi captada pela família Odell.

Cinco horas depois do embaraço que quase se tornou acidente de fato, o Titanic cruzou o Canal da Mancha, chegou à Bretanha e ancorou de frente ao porto francês de Cherbourg, não podendo atracar de fato no cais despreparado devido ao seu porte inédito. Este foi um momento maravilhoso para Jack, pois ele possivelmente conheceu outros garotos e fez amizade com eles enquanto exploravam o navio juntos. Talvez mais tarde naquela tarde, Jack tenha se encontrado com seus tios e ido com eles à piscina.

Abaixo: Testemunhas oculares da iminente colisão chegaram a testemunhar que se houvesse perigosa a proximidade entre os navios foi tamanha que seria virtualmente possível alguém a bordo esticar os braços e tocar o costado do navio a deriva nas águas portuárias do rio Test em Southampton. Ocupantes do Titanic testemunham apreensivos o movimento perigoso debruçados ao longo das janelas e varanda aberta do convés de passeio da 1ª classe do Titanic situada a 15 metros acima do nível da água. A foto em questão foi captada pelo missionário Francis Browne.


Abaixo: Ainda que aparentemente não foi tirada pela família Odell (mas aparentemente por Francis Browne), a foto abaixo registra o flagrante momento imediatamente após o incidente entre o Titanic e o SS City of New York, quando este último foi manobrado e realocado para uma posição segura num pier logo mais a frente, liberando a passagem do Titanic. O City of New York era um navio de passageiros britânico operado pela Inman Line e construído pelos estaleiros da John Brown & Company em Clydebank. Ao fundo da foto se pode notar as chaminés e parte do RMS Oceanic, da White Star Line, que permaneceu atracado na mesma posição em que estava anteriormente quando o Titanic passou. Atracado adjacente ao Oceanic, O New York rompeu as amarras, ficando então a deriva em rota de colisão com o casco do Titanic devido ao chamado efeito canal, um movimento causado pela sucção das hélices do novo navio que estava marcha deixando as águas de Southampton. Junto do New York nesta foto está um rebocador, habilmente manobrado na ocasião para reverter a situação de risco que apenas atrasou, mas poderia ter adiado aquela tão esperada viagem inaugural .

Lawrence Beesley (ao lado), passageiro sobrevivente da 2ª classe, que acompanhava a partida observando a partir dos convéses superiores descreveu o incidente em suas próprias palavras:

"Ouviu-se uma série de disparos semelhantes aos de um revólver e, do cais do New York, rolos serpenteantes de corda grossa se lançaram no ar e caíram para trás, entre a multidão, que recuou alarmada para escapar das cordas esvoaçantes. Esperávamos que ninguém tivesse sido atingido, mas um marinheiro ao meu lado teve certeza de ter visto uma mulher sendo levada para receber atendimento. E então, para nosso espanto, o New York se aproximou lenta e discretamente. Houve gritos de ordens, marinheiros correndo de um lado para o outro, estendendo cordas e colocando esteiras do lado de fora, onde parecia provável que colidiríamos."


Abaixo: O desfecho da situação aqui fotografado sob outro ângulo a partir do cais. A proa do pequeno City of New York está à direita, e o Titanic ainda inativo se prepara para recomeçar a viagem após o incidente. O pequeno barco nas proximidades à ré do transatlântico carrega ao que se sabe um fotógrafo, também registrando a situação para a posteridade.

Em abril de 2023, aniversário de 111 anos do naufrágio, veio a público para leilão pela casa de leilões Henry Aldridge & Son Ltd., uma carta de duas páginas em papel timbrado personalizado do Titanic, escrita por Stanley May, tio de Jack, que testificou em suas próprias palavras o quase incidente que ele também testemunhou a bordo durante aquelas pouco mais de 24 horas de travessia. O manuscrito estava direcionado às suas duas filhas, Hilda e Gladys, e foi enviado para terra firme pela tripulação do Titanic junto de outras tantas correspondências escritas a bordo. Ele dizia: “O New York se soltou de suas amarras e foi tragado pelo Titanic e, como ele não tinha vapor, ficou em condições bastante instáveis... Rebocadores o salvaram e não houve grandes danos, mas temo que muitas pessoas tenham se ferido pelas cordas arrebentadas, mas não teremos notícias até desembarcarmos.” [...] “Tivemos uma viagem muito agradável e deixaremos o navio (ou melhor, ele é mais parecido com um palácio) em algumas horas.” Stanley então finalizou a carta dizendo às filhas que as enviou um livreto de cartões postais que ele comprou a bordo do Titanic.


Ao lado: Mais um registro dos Odell. Aqui o grupo fotografa o perfil das chaminés do Titanic, impelidos talvez pela admiração quanto a dimensão destes dutos de eliminação da fumaça gerada pelas caldeiras do transatlântico. As janelas quadrangulares junto ao convés são parte dos clerestórios das amplas janelas da Sala de leitura da 1ª classe, situada no convés abaixo. Historicamente se sabe que teria sido por aqui, a menos de dez passos à ré do fotógrafo, que os músicos teriam tocado para acalmar os passageiros na madrugada do naufrágio.

É muito provável que em Cherbourg Jack tenha assistido ao desembarque e embarque de outros  passageiros. Logo após a partida do navio, por volta das 20h, Jack teria ido para sua cabine, pois era sua hora de dormir. No dia seguinte, Jack teria tido tempo de se encontrar com os outros meninos e passar um tempo com eles. O Titanic chegou a Queenstown por volta das 11h30. Os Odell e os outros passageiros que desembarcaram se prepararam para deixar o navio. Pode ter sido nesse momento, após uma caminhada rápida pelo convés, que Kate tirou a foto de Jack ao lado de sua mãe e tios.

Abaixo: O grupo dos Odell posa para um registro no convés de botes do Titanic, à bombordo, ao lado do teto elevado sobre a Sala de Leitura da 1ª classe. Pendurada nos ombros de Jack uma das câmeras da família, uma Kodak No 1, special model D. Para além de parte das imensas chaminés de 19 metros de altura, é possível observar também nesta foto o clerestório com vitrais das janelas do Lounge da 1ª classe, que iluminavam a sala correspondente logo abaixo, no convés de passeio. Para os cinéfilos de plantão, é exatamente aqui que, sentada em uma cadeira de convés, a personagem "Rose" (vivida por Kate Winslet) folheia a pasta de desenhos de seu parceiro romântico "Jack" (Leonardo DiCaprio) em "Titanic" (1997), dirigido pelo canadense James Cameron. Veja clicando AQUI

Abaixo: Francis Browne, amigo da família e parte da comitiva dos Odell, fotografa a secção dianteira do convés de passeio da 1ª classe, ou convés A. O pequeno Odell aparece junto da amurada observando a proa do navio. Ao fundo é possível ver outro passageiro da 1ª classe, o Major Archibald Butt, conversando com um grupo de pessoas. Butt era jornalista, oficial do exército e assessor dos presidentes Theodore Roosevelt e William Howard Taft. Ele se tornaria uma das vítimas do desastre apenas cinco dias após este registro. Segundo estudos o marinheiro em pé em serviço em primeiro plano seria Alfred Olliver, que viria a ser um dos sobreviventes do naufrágio. As 10 janelas aqui se abriam, respectivamente, paras as cabines A3, A1, A2 e A4, com duas destas janelas correspondendo ao final de corredores da 1ª classe. A estrutura com aparência de caixa, na parte inferior do convés acima, se tratava do invólucro de proteção dos mecanismos funcionais do timão e telégrafos instalados diretamente acima na ponte de comando.

Após o almoço, Jack e sua família embarcam no barco a vapor "America" ​​para o continente, o porto de Queenstown. O Padre Browne e Kate tiram fotos, e é o Padre Browne quem tira a última foto do capitão do Titanic enquanto observa a partida deles - agora todos da família embarcados na lancha America - a partir da asa da ponte de comando situada a vinte metros acima do nível da água (ao lado). Terminava assim a curta travessia da família Odell. Uma vez no continente, eles observam a partida do Titanic e Kate tira uma foto dele avançando para o Atlântico. Kate também faz um registro impressionante, que mostra o massivo casco do navio subindo da água como uma muralha.

Ao lado: Parafraseando a narração do documentário "Titanic Secrets" lançado em 1986 ("Os Segredos do Titanic", No brasil), o Capitão E. J. Smith aparece nesta que é uma das últimas fotografias em vida e parece estar "equilibrando-se no limiar do destino". Pendurado à borda do convés aqui está o bote de emergência de número 01, com 7,6m de comprimento e capaz de acomodar 40 pesoas. Na madrugada de 15 de abril o mesmo se fez ao mar às 1:00h da manhã (1h e 20min antes do naufrágio) carregando [pasme] apenas 12 pessoas, dentre as quais Sir. Cosmo e Lady Lucile Duff Gordon, passageiros da 1ª classe. O pequeno bote se tornou então uma das maiores controvérsias acerca da evacuação visivelmente deficiente e mal orientada do Titanic.

Abaixo: O imponente perfil do casco à boreste do Titanic, aqui fotografado por Kate enquanto desembarcava com a comitiva dos Odell a bordo da lancha America, da White Star Line, em 11 de abril. As duas portas aqui se abriam diretamente para o saguão de embarque da 1ª classe no convés D. Os dezoito metros de altura do nível da água até o convés de botes seriam encarados com muito receio na madrugada de 15 de abril, quatro dias após esta foto. Virtualmente um abismo negro até a água quando passageiros e tripulantes se veriam obrigados a cruzar a amurada do navio que parecia seguro em direção aos aparentemente perigosos botes suspensos na escuridão daquela noite fria e sem luar. Ao fundo se pode notar, equilibrados a meia borda do convés da segunda classe, quatro dos botes standard do Titanic, especificamente os de número 9, 11, 13 e 15. No nível da água é possível ver muito discretamente algumas aves marinhas rondando o navio, certamente em busca de comida. Em função de seu massivo peso, é interessante observar que da linha d'água observada nesta foto até o fundo do casco do navio ainda haviam entre 10 e 11 metros submersos.

Abaixo: Mais um click histórico dos Odell. Aqui o Titanic é visto enquanto atracado para transbordo dos passageiros que desembarcaram e os que embarcaram em 11 de abril em Queenstown (hoje Cobh), na Irlanda do Sul, sua segunda e última escala na Europa. As aves aqui circundam a dianteira do navio certamente em busca dos restos de comida despejados pelos dutos de esgoto do navio. A assinatura de Jack Odell aparentemente data de 11 de abril de 1992, o octogésimo aniversário do seu afortunado desembarque.

Abaixo: O Titanic navega em direção ao destino neste registro de 11 de abril, pouco após a foto anterior acima. Este click fantástico foi o último da família Odell, mas não é a derradeira foto captada do Titanic antes da tragédia, ainda que frequentemente citada como tal em boa parte das fontes online atualmente. 

Os Odell passaram a noite em Cork e retiraram o carro alugado no dia seguinte. Eles então começaram sua viagem de passeio e negócios de uma semana pela Irlanda. O plano dos Odell de viajar pela Irlanda em abril de 1912 foi uma decisão afortunada. No retorno para Londres - e ao se interarem sobre o naufrágio do Titanic -, em 19 de abril compareceram o serviço memorial ao desastre do Titanic na Catedral de St. Paul, celebrado as 12h daquele dia.

As fotografias de Odell discutidas nesta matéria só vieram à tona por volta de 1987 e acrescentam mais informações a viagem insólita do Titanic. O Padre Brown e Kate Odell tiraram as únicas fotografias conhecidas que registram o quase acidente no início da viagem do Titanic. Quanto a Jack, até onde sabemos, a fotografia instantânea tirada dele a bordo do Titanic é uma das únicas que mostram uma criança a bordo, e também a única em que é possível ver uma câmera fotográfica a bordo.

É interessante observar essas fotografias. Na fotografia em que Jack está com a mãe e os tios, ele exibe um sorriso travesso, e em outras fotografias, Jack parece sério. A foto que o mostra sentado no carro alugado sugere que ele está orgulhoso por estar sentado ao lado do motorista. É evidente que ele estava entusiasmado com as férias e é possível que esta tenha sido a primeira viagem de carro de Jack, aos 11 anos, pela Irlanda, em uma Star Landaulette.

Embora não fosse um sobrevivente do naufrágio propriamente, pois não estava no navio durante o desastre, ele se tornou o passageiro masculino com a vida mais longa, embora tenha guardado poucas lembranças da curta viagem. 

Odell casou-se duas vezes, e foi longevo até mesmo para ver a notícia dos destroços do Titanic sendo finalmente redescobertos em 1° de setembro de 1985. 

Ele faleceu em 19 de novembro de 1995, com então 95 anos, mesma ano em que James Cameron efetuava os mergulhos nos destroços do navio para então produzir o filme "Titanic", que se tornaria sucesso retumbante quando de seu lançamento no final de 1997. 

Jack chegou em idade avançada até mesmo a autografar cópias de suas próprias fotos para a coleção de entusiastas da história do Titanic. Estes últimos certamente empolgados por estarem frente a frente com um passageiro fotógrafo de contribuição tão ilustre para o legado do Titanic.

Ainda hoje, passados 113 anos do desastre, um número modesto de fotografias inéditas têm surgidos ao passar dos anos conforme as pesquisas ao redor do mundo avançam, especialmente divulgadas por casas de leilões, especialistas ou mesmos entusiastas que, por acidente ou empenho direcionado, acabam encontrando registros inéditos do Titanic... Porém, nenhum destes registros históricos na forma de fotografias contém a marca pessoal tão valiosa quanto as fotografias da família Odell e de Francis Browne, que captaram eles mesmos e com seus próprios ângulos pessoais uma fração da vida e movimento a bordo do Titanic durante aqueles dois dias jubilosos do início da viagem do maior, mais luxuoso e seguro navio do mundo em 1912.

Créditos

Pesquisa, tradução e adaptação de texto e imagens, Rodrigo Piller, Titanic em foco

Fontes
Titanic Historical Society pamphlet
Encyclopedia Titanica
Titanic An Illustrated History
titanicexperiencecobh.ie
commons.wikimedia.org
wikipedia.org 
Titanic In Photographs
histclo.com
titaniclegacy.us
findagrave.com
titanicitems.com
historiccamera.com
bukowskis.com
RMS Titanic Brasil, Facebook
alamy.com
prints-online.com/
Titanic, coleção Salvat
angelfire.com/mac/4_chedoke_students/titanictimeline.html
blogs.unicamp.br
titanicconnections.com
Titanic voices, memories of the fateful voyage
titanic.fandom.com
https://nypost.com/
kenmarschall.com
manresa-sj.org